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SÃO PAULO FONOGRAFADO

Biancamaria Binazzi e Enrique MenezES

          A Discoteca Pública Municipal (hoje Discoteca Oneyda Alvarenga, no Centro Cultural São Paulo), justificava nessas palavras curiosas um pedido de verba pública para ser usada em 1937 em seu serviço de gravação de discos:

 

A discografia nacional, erudita e popular, é sumamente pobre. As casas gravadoras seguem naturalmente seus interesses comerciais e nada fazem, no domínio da música erudita, de artisticamente recomendável, e no domínio da música popular – de folcloristicamente sério. Nem se pode esperar que esse programa de trabalho das casas gravadoras seja melhorado enquanto o público mesmo não começar a exigir coisa melhor. (...) é natural que não se possa confiar às casas gravadoras o destino exclusivo de nossa música registrada. (1)

 

          Fundada em 1936, como uma iniciativa do Departamento de Cultura de São Paulo, a Discoteca tentava criar uma outra via em relação aos interesses comerciais da então recente e lucrativa indústria fonográfica. Foi a primeira discoteca brasileira a inaugurar um serviço de gravação sonora etnográfica, além de registrar e lançar, em disco, a música de concerto de compositores paulistas. Aproximava assim as duas pontas normalmente afastadas e descartadas do novo mercado musical: a gravação de performances de música popular captadas em seus lugares originais e a música de concerto contemporânea. 

          Sob direção da poetisa e musicóloga Oneyda Alvarenga, a Discoteca amplificava o sonho admirável e problemático dos intelectuais do Departamento de Cultura de modelar uma identidade nacional a partir da cultura popular. Como uma biblioteca sonora, oferecia cabines para audição, promovia concertos de discos, congressos, concursos, publicações e estudos sobre a cultura brasileira. Ali, qualquer pessoa poderia (ainda pode) sentar numa cadeira confortável e ouvir uma coleção de discos, consultar partituras, livros, e ver filmes etnográficos. Em tempos de internet, onde um sem-fim de coisas estão acessíveis online a dois cliques, a importância desse tipo de iniciativa pode parecer menor, mas façamos o esforço analógico de pensar que aquele era um tempo no qual ainda não havia o troca-troca furibundo das redes virtuais.

          Quando escreve Macunaíma, por exemplo, Mário de Andrade não podia encomendar pela Amazon, e teve que tomar complicadas providências não-digitais para conseguir um exemplar do livro Von Roraima zum Orinoco, no qual o pesquisador alemão Theodor Koch-Grünberg relata o mito indígena de Maku-Naima, escutado em suas viagens pela Amazônia, na virada para o século XX. Nas viagens que deram origem a esse livro (que Mário conhecia de trás pra frente) além de anotar mitos e paisagens, o alemão usou um fonógrafo para gravar e reproduzir sonoridades amazônicas. (2) Era uma possibilidade incrível: os sons indígenas poderiam ser captados em seu lugar original na forma de cilindros de cera e reproduzidos em qualquer lugar do mundo. Todo um novo campo se abria.

          Mário de Andrade, que se interessava tanto pela música indígena quanto pela popular e pela de concerto, vê nessa nova tecnologia uma enorme oportunidade, e lamentava que ainda não existissem discos “produzidos cientificamente” para estudo da música tradicional brasileira. Ainda que tenha sempre recorrido ao pentagrama para escrever música, o escritor estava consciente da limitação de tentar traduzir os sons com lápis e papel. Sabia que sua escrita carregava as marcas de uma certa tradição (euro-cristã), privilegiando as alturas em detrimento do timbre, entonação, “sutilezas de invenção do cantador” e invenções rítmicas que desafiavam as barras de compasso. A novidade da gravação sonora poderia ultrapassar as possibilidades da escrita musical.

 

Nunca uma canção transcrita no papel ou no instrumento poderá dar a quem estuda, a sua exata realidade. E a verificação dessa verdade, depois que a fonografia veio nos apresentar o mundo de riqueza do cantar de todos os povos da terra, tornou a grafia musical por meios não mecânicos, bastante desautorizada como base de estudos etnográficos e folclóricos. (3)

 (...)

Além de não registrar o timbre, os ajuntamentos de sons, e as miseráveis polifonias e acordes resultantes desses ajuntamentos imprevistos e talvez ocasionais, não representam sequer a realidade melódica ou textual. Representam apenas uma constância, quero dizer: a maneira mais frequente e predominante com que a coisa se manifestou textual e melodicamente. (...) Há que recorrer à gravação por meios mecânicos, disco e filme. (4)

 

          Sobre as imensas possibilidades que o fonógrafo trazia para a música, o nosso escritor também se informava com outro alemão, Eric M. Hornbostel, que considerou a crença na transcrição musical no papel uma espécie de “superstição europeia”. Pioneiro naquilo que ficou conhecido como “musicologia comparada”, Hornbostel começava a discutir a suposta superioridade das concepções europeias na música. Mário traduz um trecho de seu livro African negro music, de 1928:

 

Como material para estudo, os fonogramas são imensamente superiores à notação das melodias e não se pode conceber que este método inferior ainda seja usado. Basta verificar que exclusivamente por meio da fonografia, é que podemos obter a coisa legítima. O pressuposto geral de que a substância de uma canção pode ser notada em pauta com os auxílios, talvez, de sinais diacríticos e texto explicativo, é mera superstição europeia, ocasionada pela evolução da música e a maneira geral de pensar dos europeus. Os próprios cantores dão tanta importância ao timbre da voz e à dicção como a qualquer outra coisa. E mesmo às vezes mais. De fato, dicção e timbre demonstram ser caracteres raciais profundamente predeterminados por funções fisiológicas, e são, por isso, valiosa prova das relações e diferenciações antropológicas. Assim, os povos e suas músicas, não se distinguem tanto pelo que cantam como pela maneira por que cantam. (5)

 

          Até aquele momento, os discos de música brasileira gravada em campo em seus contextos locais eram extremamente raros, e o escritor procurava nos discos comerciais as performances que mais se aproximavam da espontaneidade original. Desanimado com o que havia de música rotulada nos discos como “folclórica”, entre “deformações”, “exotismos” e “estilizações”, Mário pinçava raras (e preciosas) exceções: nos artigos “A música no Brasil” (de 1931) e “A música e a canção populares no Brasil” (de 1936), encomendados por organizações internacionais, o escritor explica para o público estrangeiro que para “conhecer (e amar!)” o brasileiro, deveriam escutar, entre outros discos, cateretês com Mariano e Caçula, cururus com Zico Dias e Ferrinho, modas de viola com Laureano e Soares, folia de reis com Cornélio Pires e Maracajá, jongos com Motta da Motta, a série de candomblé com os Filhos de Nagô, macumbas com J. B. de Carvalho, sambas com Aracy de Almeida, choros com Pixinguinha e o “admirável” batuque Babaô Miloquê gravado por Josué de Barros. Opa! A gente, que não é estrangeiro, agradece as dicas!

Coleções de sons pelo mundo: inspirações

 

          Além de ouvir música brasileira em discos comerciais nacionais, Mário também estava informado sobre as ideias europeias que surgiam e circulavam na virada do século XIX para o XX. Na “Justificação da Verba para 1937 sobre gravação de discos”, Mário reforça a importância das políticas públicas na gravação sonora, e cita criações internacionais como a dos Arquivos Fonográficos de Berlim e Viena, o Museu da Palavra e do Gesto na França e a seção de pesquisas musicais folclóricas por meio do disco do Ministério das Belas Artes na Romênia: 

 

A Alemanha tem uma notável coleção de fonogramas de nossa música indígena, enquanto nós próprios nada possuímos a esse respeito. A Rumania vê nascer a seção de pesquisas musicais folclóricas por meio do disco, do Ministério das Belas Artes; vê nascer a valiosíssima, eficientíssima Sociedade dos Compositores Rumenos. Na França, a Sorbonne trabalha seriamente. E assim por toda a parte.

E em toda a parte, os governos quando não iniciam eles mesmos as campanhas científicas, são patrocinadores delas. Há colaborações internacionais, há auxílios mútuos entre organizações de países longínquos, para preservação do que uma terra tem de mais estimável: sua tradição, as manifestações culturais de seu povo. (6)

 

          Nessas instituições, pesquisadores (como Hornbostel) começavam a iluminar e discutir focos etnocêntricos de interpretações anteriores e a espécie de eurocentrismo alucinado que com frequência menosprezava a música de povos não europeus. (7) Nesse impulso, antropólogos, linguistas, etnólogos e musicólogos começavam a buscar alternativas à interpretação linear e simplista da evolução cultural. Da convergência entre a musicologia, a antropologia, a biologia, a psicologia e a linguística, entre outras, começava a aparecer um campo colaborativo entre as disciplinas, que, conforme a ênfase, recebeu os nomes de musicologia comparada, etnomusicologia e antropologia da música. Ao trabalhar nessa trilha, Mário de Andrade procura canalizar recursos públicos para acertar os ponteiros brasileiros com as tendências internacionais mais avançadas.

          Áustria e Alemanha: Em 1899 surgia o Arquivo Fonográfico de Viena, ligado à Academia Imperial de Ciências. Fundada pelo psicólogo Sigmund Exner, era a primeira coleção oficial com registros fonográficos de falas e canções em variados idiomas, para estudos na área da linguística, medicina, psicologia, zoologia e musicologia comparada. Em 1900, outro psicólogo, Carl Stumpf, criava um Arquivo Fonográfico dentro do Instituto de Psicologia da Universidade de Berlim. Hornbostel, discípulo de Stumpf, foi diretor desse arquivo entre 1905 e 1933. (8) O Departamento de Cultura de São Paulo adquire dessa instituição, em 1938, cópias daqueles cilindros registrados pelos pesquisadores alemães no início do século, com gravações de música indígena brasileira.

 

          França: O diretor do Departamento de Cultura de São Paulo também estava acompanhando as notícias que vinham da França. Em 1900, a Société d’Anthropologie de Paris fundava o seu arquivo sonoro, (9) e em 1911 surgiam os Archives de la Parole (10) no Instituto de Fonética da Universidade de Paris, uma iniciativa conjunta da universidade com a fábrica de discos e fonógrafos Pathé. Em 1928, no Congresso de Artes Populares realizado pela Liga das Nações em Praga, o então diretor dos Arquivos da Palavra, Hubert Pernot, lançava um apelo para que governos se engajassem na gravação fonográfica de cantos e melodias populares “ameaçadas". (11) Essa recomendação seria citada por Paulo Duarte anos mais tarde em outra justificativa para obtenção de recursos financeiros para gravações fonográficas do Departamento de Cultura:

 

Suponho não ser preciso insistir sobre a importância da colheita urgente dessas manifestações que, infelizmente, tendem a desaparecer… O serviço de registro do folclore musical brasileiro encetado pela Discoteca, atende assim indiretamente ao apelo lançado pelo Congresso Internacional de Artes Populares (reunido em Praga pelo Instituto Internacional de Cooperação Intelectual): a maioria dos cantos e melodias populares estão prestes a desaparecer. Sua conservação é de uma grande importância para a ciência e para a arte. O Congresso recomenda insistentemente aos diversos governos a fazer proceder ao seu registro fonográfico no mais curto prazo possível. As notações, por mais perfeitas que sejam, não substituirão o registro fonográfico. (12)

 

          Romênia: Outra importante referência para Mário de Andrade é o setor de arquivos da Sociedade de Compositores Romenos, fundado em 1928 e conduzido pelo compositor e musicólogo Constantin Brailoiu. (13) As reflexões sobre registro sonoro e metodologia para gravação e sistematização de fonogramas de música folclórica apresentadas em “Esquisse d’une méthode de folklore musical” (1931) do pesquisador romeno têm bastante ressonância com a forma com que serão conduzidas as gravações do Departamento de Cultura e podem ter chegado a São Paulo via Dina Dreyfus, que ministrou um curso de Etnografia no Departamento de Cultura. (14)

          Itália: No mesmo ano da fundação do arquivo da Romênia, 1928, era fundada a Discoteca do Estado da Itália, anunciada com entusiasmo por Mário de Andrade no Diário Nacional: 

 

No ano passado o Conselho de Ministros da Itália criou, com o nome de Discoteca do Estado, um museu de discos. Esse instituto, cuja importância histórica e técnica foi sobejadamente encarecida por todos quanto se preocupavam com a música na Itália, tem como função principal registrar todas as canções populares regionais e tradicionais italianas que, abandonadas na voz do povo, vão sendo esquecidas ou substituídas por outras. Ora, dada a importância básica que tem a música folclórica na alimentação das escolas musicais nacionais, é fácil da gente imaginar a importância decisiva da Discoteca na conservação da italianidade da música italiana. Entre nós quase nada se tem feito a esse respeito. (15)

 

          A Discoteca italiana nascia no período fascista como um museu de vozes dedicado a “coletar e preservar para as futuras gerações a voz viva dos cidadãos italianos que ilustraram sua pátria em todos os campos e se fizeram dignos dela”. (16)

As gravações sonoras do Departamento de Cultura

          É conhecendo essas experiências internacionais (entre outras) que Mário de Andrade desenha a Discoteca Pública Municipal do Departamento de Cultura de São Paulo, que nascia como um braço de uma Rádio-Escola que nunca chegou a existir. Pensada pelos intelectuais do Departamento de Cultura como o principal canal de comunicação com o público da cidade, a Rádio deveria transmitir, em sistema de auto-falantes, conferências, cursos, concertos de música ao vivo e gravada em discos, alimentada por grupos musicais criados pelo Departamento. Por motivos diversos, a Rádio nunca saiu do papel, cabendo à Discoteca a função de promover a difusão desse conteúdo, seja por consultas públicas ou pelos chamados Concertos de Discos.

          Instalada na Rua da Cantareira 216, a Discoteca abriu suas portas para o público em novembro de 1936. Para o cargo de direção, Mário de Andrade convida sua amiga e antiga aluna Oneyda Alvarenga. Ela tinha 24 anos de idade quando deixa Varginha (MG) para viver em São Paulo e dirigir a Discoteca até 1968. Mais do que ninguém, é a grande responsável pela manutenção do legado da Discoteca e sua sobrevivência até os tempos atuais. Num processo que passa pela demissão de Mário de Andrade em 1938, o corte de recursos financeiros e uma série de mudanças de endereço, Oneyda não apenas foi a guardiã do arquivo como também contribuiu para sua conservação, sistematização e divulgação. 

          Colocando em prática as ideias de Mário de Andrade de fortalecer os estudos sobre folclore, etnografia e fonética com o recurso da gravação sonora, para Oneyda a documentação folclórica da Discoteca 

 

visa não só um melhor conhecimento do nosso povo através de seus costumes e tradições, como fornecer aos nossos compositores uma fonte que lhes permita, pelo estudo da nossa música popular, orientar e fixar a sua arte dentro da realidade nacional. (17)

 

          Nessa direção, a Discoteca irá inaugurar em 1936 os seus serviços de gravação. O selo fonográfico da Discoteca dispunha de três cores: preto, vermelho e azul, destinados, respectivamente, ao Arquivo da Palavra (Vozes de Homens Ilustres do Brasil e Pronúncias Regionais), Música Erudita da Escola de São Paulo e Folclore Musical Brasileiro. Em 1937, ao solicitar cem contos de réis para o prosseguimento das atividades de gravação sonora da Discoteca, um ofício provavelmente redigido por Mário de Andrade conclui:

Gravando a boa, a excelente música dos compositores da escola paulista e buscando o que há de essencial e característico no folclore musical brasileiro para estudos científicos e base de trabalhos para esses mesmos compositores, teremos feito por nós mesmos e pelo povo mais que 250 discursos pomposos

 

Série Música Erudita (ME)

          Até a inauguração do selo de Música Erudita da Discoteca, a indústria fonográfica se dedicava quase exclusivamente à música popular. As obras de compositores consagrados como Carlos Gomes e Heitor Villa-Lobos eram gravadas e prensadas no exterior. Os fonogramas de música erudita da Discoteca foram realizados entre 1936 e 1945, somando 1 hora e 46 minutos de gravação. Os discos vinham acompanhados de livretos informativos sobre as obras e autores e eram distribuídos pelas organizações culturais, discotecas e escolas de música, tanto nacionais como estrangeiras. Os grupos musicais mantidos pelo Departamento gravaram peças de, entre outros compositores, Carlos Gomes, Clorinda Rosato, Camargo Guarnieri, Francisco Mignone, Dinorah de Carvalho e João de Sousa Lima. 

 

Série Arquivo da Palavra (AP)

          Gravar vozes de pessoas ilustres para documentação histórica ou usar o disco para estudos de fonética e linguística já eram práticas comuns nos arquivos sonoros da Europa e certamente inspiraram Mário de Andrade e Oneyda Alvarenga na formulação da série Arquivo da Palavra. A comissão fundadora do Arquivo de Viena, por exemplo, propunha, a produção de “retratos acústicos” de idiomas e dialetos da Europa e do mundo e a gravação de falas, frases e discursos de personalidades célebres. Em Paris, os Archives de la Parole propunham o registro de “vozes célebres”, tendo gravado também “dialetos e folclores” do mundo. Na Itália, a Discoteca di Stato, com arquivo “La Parola dei Grandi” preservava as vozes de protagonistas militares da guerra, artistas e homens do governo. Na mesma direção, o Arquivo da Palavra do Departamento de Cultura produziu, com o auxílio do filólogo Antenor Nascentes e do poeta Manuel Bandeira, quatorze discos para estudo de fonética na coleção “Pronúncias regionais do Brasil”, e três discos para a coleção “Homens Ilustres do Brasil”, com vozes como as de Camargo Guarnieri e Lasar Segall. Essas gravações somam 1 hora e 13 minutos. 

 

Série Folclore (F)

          Os registros da série Folclore constituem a maior parte dos fonogramas produzidos pela Discoteca, totalizando 33 horas e 33 minutos de gravações realizadas entre 1937 e 1943. (18) As primeiras tentativas de registro pelo Departamento se inauguram em 1936, quando uma equipe liderada pelo então casal Claude Lévi-Strauss e Dina Dreyfus vai a Mogi das Cruzes e registra em filme (silencioso) a Festa do Divino Espírito Santo. Hoje podemos assistir imagens em movimento de Cateretês, Cavalhadas e Moçambiques, entre outras. Também integram a filmoteca cenas de tradições indígenas do Mato Grosso gravadas por Dina e Claude naquele mesmo ano, com apoio do Departamento. São filmes mudos, limitação que Mário de Andrade procura sanar ao encomendar para a Discoteca Pública Municipal aparelhos de gravação sonora:

 

Foi importado um aparelho gravador portátil Presto Recorder, um tipo fabricado especialmente para regiões tropicais. Esta máquina de gravação destina-se a viagens de pesquisas etnográficas, e será certamente um auxiliar poderoso dos trabalhos do Departamento, gravando cantigas e demais músicas populares e variações regionais de pronúncia da língua nacional. Completado por qualquer máquina cinematográfica de pequeno custo, evita as despesas mais vultuosas que causam as filmagens contratadas com as empresas especialistas. (19)

 

          A primeira “saída” para gravação aconteceu em maio de 1937, no interior do estado de São Paulo, nos dias 2 e 3. A equipe do Departamento vai a Itaquaquecetuba registrar os sons da dança de Santa Cruz, sob a responsabilidade de Oneyda Alvarenga e Erich W. Klemm. A primeira das gravações feitas pelo Departamento vai reproduzida aqui diretamente do Arquivo Histórico da Discoteca Oneyda Alvarenga, na faixa 6 desse disco, Dança de Santa Cruz. Talvez o ouvinte escute, como nós, o som que surge na viola e que é amplificado pelo peito da dupla de cantadores. As vozes da dupla são endossadas com força e em grupo pelo canto coletivo, que intensifica e projeta, em direção ao agudo, a santa mensagem para longe, em ritmo livre e intenso. (20) O corpo dançante é envolvido na festa musical-religiosa em sapateado e palmas, que vão formar, em contraste, o naipe de ritmo marcado com a viola. 

 

          O Cateretê, faixa 4 desse disco, foi gravado pelo Departamento entre os dias 5 e 9 de Maio de 1937, por Luis Saia e Benedito Pacheco no bairro de Santo Amaro, São Paulo. Na ocasião, foi registrado em disco um rancho mineiro de Congada da cidade de Lambari (sul de Minas Gerais), dirigido por Joaquim Luiz do Nascimento, que estava em São Paulo participando das Festas do Divino Espírito Santo. Nesse cateretê a dupla de cantadores entoa um mesmo texto, em duas melodias que se perseguem e se complementam, em desenhos similares mas distanciados por intervalos melódicos próximos. As duas vozes estão deslocadas por um intervalo rítmico, gerando tensão e complementaridade. Os cantadores vão alongando ou diminuindo esses intervalos em caráter improvisatório, conectados e atentos um ao outro, posicionando as palavras ou notas sempre entre as do parceiro, que gera um princípio sincopado ou fugato (como no processo do cânone, e por isso Mário de Andrade dizia que “Bach foi um syncopated”). (21) Por outro lado, esse princípio também é ouro em tradições musicais africanas: podemos pensar que os cantadores colocam suas vozes de modo que fiquem, ao mesmo tempo sobrepostas, engatadas e alternadas. (22)

          Será possível que processos canônicos europeus e sobreposições africanas tenham se amplificado na música caipira? De qualquer modo, esse processo foi esvaziado ao longo do tempo, tendo a músca caipira se tornado progressivamente dessincopada (se é que a palavra existe), se aproximando do pop, se tornando country e universitária, talvez “assinalando a marcha da racionalização” ligada à indústria cultural. Talvez seja isso o que temiam os intelectuais do Departamento em relação à desaparição de sonoridades frente ao processo industrial, e só podemos ouvir a riqueza dessa dupla “sincopada” ou “engatada” graças a esse maravilhoso registro feito pelo Departamento de Cultura de São Paulo. 

          Entre fevereiro e julho de 1938, então, é realizada a famosa Missão de Pesquisas Folclóricas, na qual enviados do Departamento vão fotografar, fonografar, filmar e anotar diversas manifestações culturais de seis estados do Norte e Nordeste. Totalizam cerca de 30 horas e 10 minutos de gravação sonora, e parte dela está disponível para o público em CD lançado pela Biblioteca do Congresso (1997), em uma caixa com 6 CDs editada pelo selo SESC (2006) e em CD-ROM editado pelo CCSP (2010). 

Já depois da Missão, em novembro de 1938, e já sem Mário de Andrade no posto de Diretor do Departamento, a Discoteca Pública vai a Carapicuíba para gravar outra vez a dança de Santa Cruz, reproduzida aqui na faixa Dança de Carapicuíba, número 2 desse disco. Nesse louvor “de câmara” à Santa Cruz, realizado provavelmente dentro de uma igreja, estão ausentes a viola, as palmas e o bate-pé, e podemos ouvir com zoom a intensidade e a multiplicação das vozes que vão se endossando e organizando em uma espécie de “passacaglia da roça”, a projeção da mensagem divina, cristã, que também vai em direção ao agudo: em direção ao céu. 

          Em 1943, a equipe da Discoteca realiza a última de suas “saídas”, e vai até Atibaia gravar uma congada. Talvez possamos intuir nessas gravações o processo que o grupo do Departamento temia na década de 30: o medo de que manifestações populares estivessem em vias de desaparecimento iminente, causado pela industrialização e imposição de referências culturais “alienígenas” por meio do rádio ou do cinema:

 

Nossa música populária é um tesouro prodigioso, condenado à morte. A fonografia se impõe como remédio de salvação… Não é possível num país como o nosso a gente esperar qualquer providência governamental nesse sentido. Cabe mais isso (como quase tudo) à iniciativa do povo. São as nossas sociedades que podem fazer alguma cousa para salvar esse tesouro que é de grande beleza e valor étnico inestimável... Deixamos o apelo aqui. (23)

 

          Na faixa 8, Chora mulata, ouvimos a congada de Atibaia cantar que nasceu na Praça XI, além de versos que falam de Salgueiro, Mangueira e Estácio de Sá. Por que esses congadeiros paulistas estariam saudando locais e escolas de samba do Rio de Janeiro? Para os intelectuais, era a “influência deletéria” do rádio: cantavam sua versão para um sucesso de Assis Valente, o samba “Cansado de sambar”, gravado pelo Bando da Lua em 1936. Sim, os congadeiros ouviam rádio. Quem puder ouvir o fonograma original de “Cansado de sambar” poderá comparar as duas versões: a inspirada interpretação do Bando da Lua e a criativa versão feita pelo grupo paulista de Atibaia.

          Roberto Schwarz vai teorizar, anos depois, sobre um desejo brasileiro, presente em uma série grande de pensadores, de “busca de um fundo nacional genuíno, isto é, não-adulterado: como seria a cultura popular se fosse possível preservá-la do comércio e, sobretudo, da comunicação de massa?" (24) A intenção de “preservar” a cultura popular em forma de disco, a fonografia como remédio para “salvar esse tesouro que é de grande beleza e valor étnico inestimável”, sua transformação em disco pode, inclusive, tomar um caminho completamente diferente. José Antonio Pasta pensa que “a festa não tolera moldura: isolada, administrada ou emoldurada, ela se transforma em outra coisa qualquer – festividade, comemoração, menos festa. Neste sentido, ela marca o limite da apropriação, porque é impossível transformá-la em mercadoria sem perdê-la." (25) Entre ser transformada em disco ou cantar sucessos do rádio, em que medida a congada se perde? Em que medida se renova? De qualquer modo, a emolduração da congada de Atibaia em disco de 78rpm feita em 1943 foi servir de inspiração, hoje, para o pianista Daniel Grajew compor Atibaia, faixa 9 deste disco.

          Também surgiu a vontade de incluir a voz do próprio Mário de Andrade, interpretando sua versão para uma cantiga de mendigo escutada por ele em Catolé do Rocha. A voz do grande intelectual paulista era desconhecida do público até abril de 2015, quando um disco de alumínio com a voz de Mário foi localizado pelo pesquisador Xavier Vatin na Universidade de Indiana, em gravação feita pelo linguista Lorenzo Turner na década de 1940. Sua voz fez parte da composição Tristurinha paciente – que é como Mário qualificou certa vez a música paulista do interior. Para nós, ainda hoje, a tristeza e a infinita paciência do imenso escritor estimulam a busca, a criação e a multiplicação de formas impensadas de bem e de vida.

Notas:

(1) Justificação da Verba para 1937 sobre gravação de discos. São Paulo (município). Secretaria Municipal de Cultura. Centro Cultural São Paulo. Acervo Histórico Discoteca Oneyda Alvarenga. Fundo Discoteca Pública Municipal, pasta 1935 a 1939, não catalogado. (VOLTAR)

(2) Criado em 1877 por Thomas Edison, o fonógrafo era um aparelho mecânico, (mais ou menos) portátil que através de um cone metálico captava as vibrações sonoras e as marcava, com uma agulha, em cilindros de cera. Os cilindros de Koch-Grünberg estão entre as primeiras gravações “em campo” feitas no Brasil, na virada do século, junto com as dos também alemães Richard Wettstein e Wilhelm Kissenberth. (O botânico austríaco Richard Wettstein esteve no Brasil em 1901 e 1903, e gravou, entre outras, falas e canções Guarani para o Arquivo Fonográfico de Viena. Por aqui, o primeiro brasileiro a gravar música em viagem etnográfica foi Edgard Roquete-Pinto, que em 1912 registrou cantos indígenas Paresí, Nambikwara, sertanejos e instrumentos cuiabanos, entre outras sonoridades. Note-se nesses pesquisadores o interesse voltado aos sons indígenas, unânime entre os alemães. Ao gravar canto e instrumento de gente do Brasil central, Roquete-Pinto foi pioneiro em “gravações de campo” da música tradicional brasileira não-indígena. (VOLTAR)

(3) Andrade, Mário. “A pronúncia cantada e o problema do nasal brasileiro através dos discos” [1936], em Aspectos da Música Brasileira, p. 96. (VOLTAR)

(4) Andrade, Mário. “Samba Rural Paulista” [1937], em Aspectos da Música Brasileira, p. 118. (VOLTAR)

(5) Andrade, Mário. “A pronúncia cantada e o problema do nasal brasileiro através dos discos” [1936], em Aspectos da Música Brasileira, p. 96. (VOLTAR)

(6) Justificação da Verba para 1937 sobre gravação de discos. (VOLTAR)

(7) O famoso teórico Hugo Riemann escrevia em 1904: “A oitava subdividida em 12 semitons (...) é um fato histórico, que não se derruba com alguns apitos mal-feitos da Polinésia ou com desempenhos de canto questionáveis de mulheres de cor”. Citado por Tiago de Oliveira Pinto em “100 anos de etnomusicologia”. (VOLTAR)

(8) Mário tem em sua biblioteca particular livros desses autores, entre eles Die Anfänge der Musik, de Stumpf, e o já referido African negro music, de Hornbostel. (VOLTAR)

(9) Graf, Walter. “Das ethnologische Weltbild im Spiegel der vergleichenden Musikwissenschaft”, Wissenschaft und Weltbild, vol. 25 / 2: 151-158, 1972. Citado em Oliveira Pinto e Ribeiro. “The ideia of modernismo brasileiro”. (VOLTAR)

(10) Atualmente, as coleções sonoras do Arquivo da Palavra integram o Departamento Audiovisual da Biblioteca Nacional da França. Grande parte do conteúdo está disponível para consulta e audição online no site Gallica.Fr. (VOLTAR)

(11) Focillon, Henri. “Art populaire: travaux artistiques et scientifiques du 1er Congrès international des arts populaires, Prague, 1928”, T. II, p. 104. Mário de Andrade tem um exemplar dessa edição em sua biblioteca pessoal. (VOLTAR)

(12) Duarte, Paulo. “Contra o vandalismo e o extermínio”. (VOLTAR)

(13) Atualmente, os arquivos da Sociedade de Compositores Romenos integram o fundo Constantin Brailoiu do Instituto de Etnografia e Folclore da Academia Romena. (VOLTAR)

(14) Sobre as conexões da metodologia de Brailoiu com o projeto fonográfico pensado Mário de Andrade ver, entre outros, Flávia Toni, “Me fiz brasileiro para o Brasil” e Iuri Prado, “Mário de Andrade e a leitura de Constantin Brailoiu”. (VOLTAR)

(15) Andrade, Mário de. “O Phonographo”. Publicado no Diário Nacional em 24.02.1928 e republicado por Flávia Toni em A música popular brasileira na vitrola de Mário de Andrade, p. 263. (VOLTAR)

(16) O Departamento de Cultura possuía em seus arquivos uma cópia datilografada da “lei que criou a Discoteca di Stato”, como confirma Oneyda Alvarenga em “A discoteca Pública Municipal”, p. 96. (VOLTAR)

(17) Diário da Noite, 17/08/1938. Transcrito em Valquíria Maroti Carozze. Oneyda Alvarenga: da poesia ao mosaico das audições. (VOLTAR)

(18) De acordo com o "Catálogo Histórico Fonográfico Discoteca Oneyda Alvarenga (CCSP)". (VOLTAR)

(19) “Relatório das atividades 1936. Processo n.45.308/37”, reproduzido em Calil e Penteado, p. 112. (VOLTAR)

(20) Interpretação baseada na de Suzel Reily, em relação às Folias de Reis. Voices of the magic: enchanted journeys in southeast Brazil, p. 132. (VOLTAR)

(21) Andrade, Mário de. “As Bachianas”, Música doce música, p. 275. (VOLTAR)

(22) Ecoando processos descritos por (entre outros) Willie Anku em “Principles of Rhythm Integration in African Drumming”. (VOLTAR)

(23) ​Andrade, Mário de. “O Phonógrapho”, reproduzido em Toni, 2004. (VOLTAR)

(24) Schwarz, Roberto. “Nacional por subtração”, em Que horas são(VOLTAR)

(25) Pasta Jr, José Antonio. “Cordel, intelectuais e o Divino Espírito Santo.” Cultura Brasileira: temas e situações. São Paulo: Ática, 2002. (VOLTAR)

 

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