top of page

Posfácio

Enrique Menezes

A gente de São Paulo: três contos de Mário de Andrade sobre o autoritário paulista

O passado é lição para se meditar, não para reproduzir.

 Mário de Andrade, Pauliceia Desvairada

Introdução

(O que vai escrito nesse posfácio é livremente roubado das ideias de Roberto Schwarz, Luiz Felipe de Alencastro e José Antonio Pasta Jr. principalmente, mas também de John Manuel Monteiro, Maria Sylvia de Carvalho Franco, José de Souza Martins e Noemi Kon [entre outros], além das minhas próprias. A formulação e o argumento geral, entretanto, são meus mesmo, e consequentemente a simplificação e pioramento crônico das boas ideias originais. É texto de músico admirador dessa gente inteligente, para contextualizar e inspirar nossos experimentos sonoros, sem nenhuma pretensão de crítica literária ou acadêmica.)

 

Os três contos de Mário de Andrade reunidos nessa fonocaderneta se passam em São Paulo e são diferentes posições do olhar do escritor sobre a gente paulista: Túmulo, túmulo, túmulo foi publicado em 1926 e se passa na capital; Caso em que entra bugre é de 1929 e se passa em Campos Novos, região do médio Paranapanema; O poço é de 1942, inspirado na região de Araraquara, centro-oeste do Estado, onde Mário ia passar férias na fazenda de um tio. Pensamos que, juntos, os contos compõem (mais) um acerto de contas de Mário com a nossa formação cultural e com a ideia de identidade nacional — mas a partir da São Paulo moderna, da virada para o século 20.

 

Para criar as versões sonoras, a gente compôs música em diálogo com os contos e com gravações de música paulista do final dos anos 1930, feitas originalmente por uma equipe montada pelo Mário quando ele era diretor do Departamento de Cultura de São Paulo. Essas gravações, feitas em campo, incluíram cidades como Atibaia, Itaquaquecetuba e Carapicuíba, entre outras. Usamos também uma gravação do próprio Mário cantando, feita por Lorenzo Turner e localizada por Xavier Vatin. Nessas experiências sonoras, buscamos juntar a literatura do Mário sobre São Paulo, as gravações que ele idealizou no interior do Estado e sua própria voz, sobrepondo a isso a nossa interpretação e composição contemporânea.

 

E por que catzo resolvemos juntar contos que o Mário escreveu como partes de livros diferentes? Porque achamos que esse conjunto poderia instigar diversas coisas, entre elas uma nova olhada na percepção do escritor sobre a sociedade paulista, sobre nossa formação cultural e sobre o velho mito brasileiro das três raças. São temas caros ao modernismo, e que talvez interessem até hoje: as origens da nossa cultura e o enigma da identidade nacional.

 

Se lidos em diálogo com o mito das três raças, o conjunto contrasta bastante com as versões mais harmoniosas e divertidas. Nesses contos, Mário trabalha com uma violência muito marcada, analisando em separado as relações tensas entre o proprietário paulista branco e as culturas negras e indígenas na capital e interior do Estado. O conjunto mira então uma torção específica do enigma: a sua expressão paulista. De quebra, acaba rascunhando também a São Paulo da primeira metade do século 20, que era lugar de encontro e atrito entre, além de indígenas, negros e brancos, também de recém-chegados imigrantes italianos, espanhóis, japoneses, sírios, libaneses, alemães (entre outros) e migrantes brasileiros (nordestinos em particular).

Enigmas da identidade nacional

A famosa Semana de Arte Moderna de 1922 teve como contexto a efeméride dos 100 anos da Independência do Brasil, e incluiu reflexões sobre a identidade nacional e sobre a formação do povo brasileiro. Nesse tempo, Mário de Andrade se colocava de modo ativo no debate, interessado em estudar e descrever — de corpo presente inclusive — quais eram as características que distinguiam nossa cultura, o que nos fazia ser brasileiros — cujo mito de formação mais famoso fosse talvez aquele das três raças. Sempre meio forçado e problemático, o mito tem presença marcada entre os modernistas, por ter se tornado algo como uma resposta oficial para o processo de formação cultural do país. Mário dialogou com ele na forma de romances, contos, pesquisas pessoais, teorias da música e da literatura. Até hoje, o mito prolifera nas mais diferentes versões: populares, eruditas, express, letradas, oficiais, polêmicas, cantadas, proibidas, nacionalistas, facilitadas, definitivas, desautorizadas, em verso, adaptada para jovens, sem censura, entre tantas. Depois de 100 anos da Independência, os modernistas estavam refletindo sobre as narrativas da identidade nacional, e nós, depois de 100 anos do Modernismo, quisemos olhar de novo para questões que ainda nos tocam: em particular o eterno retorno do nosso enigma identitário.

 

Então, para refletir novamente sobre o velho enigma, é sempre bom lembrar (como já ensinava o próprio Mário) que o que hoje chamamos de Brasil foi, durante uns 3 séculos, não um país, mas alguma coisa entre territórios indígenas diversos, um ajuntado de feitorias, capitanias e depois uma Colônia. Nesse tempo foi crescente a prática do escravismo, onde as posições sociais se tornavam cada vez mais rígidas em relação à cor da pele das pessoas. É só bem depois — mais de trezentos anos depois, lá durante o século 19 — que o processo de independência do país começa (e com ele a mítica das três raças), se desenrolando em uma história difícil e complexa.

 

 Com o perdão das linhas geralíssimas (e com o perdão dos historiadores de quem copiei isso), vale uma história express: depois de ser um território em conflito entre feitorias, capitanias e grupos indígenas, as ideias de uma proto-nação e de um “ser brasileiro” começam a aparecer em mentes de Minas Gerais ao longo do século 18, fermentando até a Independência no começo do 19. E sustentar que um país é independente inclui diversas providências: definir os limites de seu território, conectar as culturas regionais que o ocupam, argumentar que esse conjunto de culturas são um povo único, que tem uma história compartilhada, que tem uma certa composição étnica, que tem uma cultura e um imaginário comum, que fala a mesma língua, que está sujeito a um mesmo conjunto de leis, que tem uma organização para a defesa dos seus interesses, que tem meios para defender a soberania de seu território etc; todas essas coisas meio forçadas que a gente inventou para chamar um pedaço do planeta de país, e para integrar uma diversidade de pessoas em uma ideia única de nação.

 

Naquele contexto de globalização e ondas migratórias, começa a ficar importante definir quem, afinal, seria esse povo, e quem não seria — como aconteceu na formação dos mais diversos estados nacionais independentes. No Brasil recém-independente, o colonizador branco-hétero-cristão-de-bem-macho-alfa-proprietário-etc que estava no poder certamente colocaria a si mesmo como cidadão, mas que status dar para as outras culturas que ocupavam o território, diferentes da dele, não-cristãos, não-brancos, descendentes de escravizados e outros espécimes humanos? Ou, no frigir dos ovos, o que fazer com negros e indígenas, se o colonizador branco-cristão-macho-hétero-alfa-cis-com-posses no poder achava que eles não deveriam ser cidadãos? Quem seria, então, o povo do Brasil? O recente país ia surgindo e a identidade de seu povo se colocava como um enigma complexo: a maioria das pessoas que ocupava o território (ou seja, não-cristãos e não-brancos) seriam incluídos como cidadãos? Ou a estrutura de direitos, justiça, cidadania etc. seria reservada só para o pequeno grupo dos brancos? Os ocupantes do poder não estavam pensando em considerar cidadãos os trabalhadores do novo país, que precisariam enfrentar uma longa história de conflitos para exigir direitos básicos etc, etc.

 

A questão étnica em particular sempre foi um vetor dessa crise, já que o nacional sempre se definiu (também) por oposição ao estrangeiro, ao outro. Se em um país europeu, por exemplo, a grande maioria da população se identificasse como branca, de ascendência definida, com longo histórico de ocupação de seu território, seria, digamos, mais simples identificar e isolar o estrangeiro. No Brasil, no tempo da Independência, aqueles que se identificavam como brancos de ascendência definida tiveram que entender o novo país como extensão de terras europeias (uma Colônia) para eleger como “estrangeiro” um outro que era de fato a maioria da população e o ocupante mais antigo do território: o negro e o indígena. Nesse caso, o país ficava sendo ao mesmo tempo independente e extensão europeia. Estrepolias tresloucadas da matemática nacional: a independência do país foi proclamada por um Imperador Português da dinastia dos Bragança, que era casado com uma Arquiduquesa do Império Austríaco, que ficou no trono do país independente e outorgou sua primeira Constituição. Quem tornou o país independente de seus colonizadores foram os colonizadores, que por sua vez seguiram no poder. Ora pois?

 

Na esteira dessa contradição severa — de mudar tudo sem mudar nada, já chamada por aí de independência neocolonial -, a mítica das três raças serviu também como ideologia para manter o poder colonizador e lidar com o outro não-europeu: entre os primeiros formuladores do mito, a formação do povo brasileiro se daria quando a pele de cor branca “absorvesse” as outras ao longo do tempo. Alguns historiadores já disseram que a pedra fundamental dessa fábula foi fixada pelo alemão Karl Philipp Von Martius, que em 1844 afirmava em Como se deve escrever a História do Brasil:

  

 

Jamais nos será permitido duvidar que a vontade da providência predestinou ao Brasil esta mescla. O sangue português em um poderoso rio deverá absorver os pequenos confluentes das raças índia e etiópica.

  

 

Esse texto foi premiado na época em um concurso promovido pelo Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Inventava uma linguagem suave para equalizar as culturas locais em povo unificado, integrando negros e indígenas: eles seriam absorvidos lentamente pela cor branca e por vontade da providência. Então, o mito das três raças era um roteiro de resposta para o enigma da nova identidade, e sua primeira versão sublimava a violência colonial em um fluxo tranquilo e positivo. Colocada a pedra fundamental, diversos outros discursos e explicações vieram se apoiando nela, reformulados e adaptados a partir de épocas e contextos particulares.

 

E em São Paulo, que é o nosso foco aqui, como esse discurso apareceu? Proponho uma olhada em alguns pontos da história paulista, de como essa mitologia veio sendo reformulada até vir dar no pensamento modernista de Mário de Andrade.

São Paulo antiga: brancos e vermelhos

Para falar sobre a história e as regiões de SP onde acontecem os contos de Mário que reunimos aqui, vou usar como apoio uma de suas características geográficas marcantes: a Serra do Mar. É uma barreira física que nos primeiros tempos da colonização europeia devia marcar uma diferença importante entre as coisas que se desenrolavam de um lado ou de outro da Serra. Diversos historiadores comentam que as atividades e culturas dos dois lados da Serra tinham suas diferenças, ainda que estivessem conectadas. Claro, imagino que chegar em 1630 e levar um saco de 50 quilos de qualquer coisa do que hoje é a Praia Grande até Parelheiros, a pé, não devia ser fácil.

 

Os comércios, culturas e relações que nascem pra cá da serra, ou seja, no planalto paulista, são o material que Mário usa para escrever Caso em que entra bugre. Aí estão os temas das entradas bandeirantes, da invasão do interior e, principalmente, da relação predatória e violenta entre brancos que chegam com os diversos povos indígenas que já estavam estabelecidos ali. Esse é o espaço onde se recriou a mítica das três raças a partir do foco na relação entre duas delas: branca e vermelha. Como lembra o historiador John Monteiro: 

 

 

a história colonial de São Paulo é positivamente inseparável da história do trabalho indígena na região, já que todos os aspectos da evolução da Capitania nos seus primeiros dois séculos estavam vinculados de maneira fundamental à expropriação, exploração e destruição de populações indígenas [no artigo De índio a escravo]. 

 

 

Em 1855, Francisco Adolfo de Varnhagen (de Sorocaba, filho de europeus) publicava uma das primeiras recriações da mítica das três raças de Von Martius a partir da experiência paulista, na sua História Geral do Brasil

 

 

Colonizadores portugueses, bárbaros africanos e selvagens índios (...) Se quereis saber que elemento de povoação predomina atualmente no Brasil, percorrei as cidades e as vilas. Vereis brancos de tipo europeu, vereis alguns negros, vereis gente procedente destes dois sangues, e raramente, n’uma ou n’outra figura, encontrareis rasgos fisionômicos do tipo índio, aliás por si só bem distinto. E isto não porque se exterminasse esta raça, porém sim porque eram os índios em tão pequeno número no país que foram absorvidos fisicamente pelos outros dois elementos, como o foram moralmente. 

 

 

Cinco anos antes, esse pacato sorocabano Varnhagen já defendia em seu Memorial Orgânico a seguinte ideia: 

 

 

temos todo o direito de conquistá-los, e não há direito de conquista mais justo que o da civilização sobre a barbárie. (...) Não temos outro recurso, para não estarmos séculos à espera que estes [indígenas] queiram civilizar-se, do que o de declarar guerra aos que se não resolvam a submeter-se, e o de ocupar pela força essas terras pingues que estão roubando à civilização.

 

 

 

A versão de Varnhagen (que se tornou visconde de Porto Seguro e que hoje dá nome a uma escola de bacana em São Paulo) é particularmente feroz em relação aos indígenas, aproveitando a ideia de “absorção” de Martius para declarar guerra a eles logo de vez. Um delírio de superioridade, que acredita loucamente na sua fantasia de civilização. Agora, um delírio muito bem calculado — digamos, um não-delírio — já que a coisa resultava em ações reais e lógicas sociais vantajosas para os novos poderosos brancos: ajudava na obtenção de terra e mão-de-obra (escravizada) para produzir os agronegócios de interesse dos colonos em São Paulo.

 

Pra cá da serra, por trás do biombo da “civilização”, a entrada nos sertões sempre havia sido uma desculpa pra caçar, aterrorizar e escravizar indígenas, para conseguir mão-de-obra sem precisar pagar salário. Atividade que essas narrativas de triunfo da “civilização sobre a barbárie”, ou da “evangelização para os selvagens” serviam para justificar. É nesse sentido que, entre os muitos testamentos antigos da São Paulo colonial pesquisados e publicados pelo grande historiador John Monteiro, há vários nos quais a gente comum da São Paulo antiga expõe seus crimes:  

 

  • Antonio Domingues e Isabel Fernandes escreveram que os indígenas escravizados por eles “são livres pelas leis do Reino e só pelo uso e costume da terra são de serviços obrigatórios”;

  • Inês Pedroso testou que “o gentio que temos são livres por lei do Reino e como tais o não posso obrigar à servidão”, mas mesmo assim, “me servi deles forçosamente como os mais moradores e assim os deixo”;

  • Lourenço de Siqueira deixa escrito que “eu tenho algumas peças do gentio do Brasil as quais por lei de Sua Magestade são forras e livres e eu por tais as deixo e declaro, e lhes peço perdão de alguma força ou injustiça que lhes haja feito, e de lhes não ter pago seu serviço como era obrigado e lhes peço por amor de Deus e pelo que lhes tenho, queiram todos juntos ficar e servir a minha mulher”;

  • Maria do Prado, em testamento: “Declaro que não possuo escravo algum, cativo, mas somente possuo como é uso noventa almas do gentio da terra as quais tratei sempre como filhos e na mesma formalidade os deixo a meus herdeiros”. 

 

Gente do céu! Quer dizer, gente branca que, cruz-credo, sequestrava, prendia e obrigava indígenas a trabalhar forçado para elas, sem assumir que isso era escravizar. O discurso dessa gente ao mesmo tempo moldava e estava moldado em uma subjetividade comum, hoje diríamos perversa, que reconhecia a lei mas não se sujeitava a ela: o negócio deles era seguir os “usos e costumes da terra”, metafisicamente forjados in nomine domini, ou seja, em nome de Deus. Ligada à ideia de guerra justa, a justificativa geral dos brancos para a prática de sequestro era dizer que estavam tirando aquelas pessoas da barbárie para conduzi-las ao reino de Deus. Quer dizer, de acordo com o argumento, a lei do Reino era ruim para os indígenas: melhor para eles era serem escravizados, já que depois iam poder ir pro céu. Os brancos estavam inventando um direito fundamentado em uma metafísica religiosa (bem estropiada, convenhamos): ao escravizarem indígenas, estavam prestando um serviço para Deus, para o Rei e para os próprios indígenas, por tirá-los da barbárie e conduzi-los para a civilização e salvação divina. Um delírio de superioridade cultural que funcionava como gambiarra jurídica para driblar a lei e escravizar pessoas (um não-delírio). Aliás, o termo “bugre” para se referir ao indígena deriva do termo em latim para búlgaro, povo que foi considerado herege pelos católicos ocidentais quando da ruptura da igreja entre oriente e ocidente. Na situação brasileira, o termo serviu para ligar o indígena à ideia de pessoa não-cristã, rude, inculta e incivilizada, que precisava de salvação para poder ganhar um lugar no céu etc.

 

No final do século 17, numa carta ao Rei Pedro II de Portugal, o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho resumia o argumento: 

 

 

são huas agregaçoens que fazemos algũs de nós, emtrando cada hũ com os servos de armas que tem e juntos îmos ao sertão desta continente não a cativar (como algũs hipocondríacos pretendem fazer crer a V.Magestade) senão adquerir o Tapûia gentio barbo e comedor da carne humana pª o reduzir ao conhecimento da urbana humanidade, e humana sociedade â associação Racional trato, pª por esse meio chegarem a ter aquella lus de Deos e dos mistérios da fé Católica que lhes basta pª sua salvação (porque em vão trabalha, quem os quer fazer anjos, antes de os fazer homens) (...) E se ao dezpoiz nos servimos deles pª as nossas lavouras, nenhũa injustiça lhes fazemos; pois tanto he pª os sustentarmos a eles e a seus filhos como a nós e aos nossos; e isto bem longe de os cativar, antes se lhes fas hũ irremunerável serviço em os ensinar a saberem labrar, prantar, colher, e trabalhar para seu sustento, couza que antes que os brancos lho ensinem, elles não sabem fazer. 

 

 

Ou seja, o bandeirante paulista queria convencer o Rei que suas práticas (contra a lei) de sequestro, tortura e escravização não eram escravização, mas um favor que fazia aos indígenas. O argumento é que eles seriam “administradores” dessas pessoas, já que os indígenas seriam incapazes de administrar a si mesmos. Conversa pra boi hibernar, claro, mas através desse caminho os colonos brancos conseguiram inventar um direito: o dos “usos e costumes da terra”, exercer controle sobre indígenas sem que isso fosse caracterizado juridicamente como escravidão. É a invenção jurídico-gambiárrica de um trabalho livre forçado in nomine domini.

 

No início do século 18, um visitador jesuíta em São Paulo escrevia que “estavam tão firmes os moradores daquela Vila [São Paulo] em que os índios eram cativos que ainda que o Padre Eterno viesse do céu com um Cristo crucificado nas mãos a pregar-lhes que eram livres os índios, o não haviam de crer”. Era prática tão generalizada que ainda não havia desaparecido no início do século 19, quando um outro religioso escrevia que “os paulistas, posto que não davam aos índios domesticados o nome de cativos, ou escravos, mas só de administrados, contudo dispunham deles como tais, dando-os em dotes de casamentos, e a seus credores em pagamento de dívidas”. Esse tipo de ideologia, espírito paulista, metafísica pra boi dormir, atravessou os séculos, apoiando ações que brutalizavam populações inteiras em São Paulo.

 

Formulado nos primeiros tempos da ocupação europeia, esse direito tosco ainda ressoava em discursos oficiais do início do século 20. Por exemplo, um jurista chamado Oliveira Viana, contemporâneo de Mário e dos modernistas, ligado ao Ministério do Trabalho do governo Vargas e depois eleito para a Academia Brasileira de Letras, escreveu uma introdução ao Censo de 1920 defendendo abertamente políticas de invasão de terras e violência contra povos indígenas. Ali, o jurista fazia elogio aberto às figuras do “bugreiro” e do “grileiro”, resumidos na ideia de “bandeirante antigo”: 

 

 

Esse formidável assalto à floresta tem dois batedores originais: o “bugreiro” e o “grileiro”. Um e outro se completam e são criações desse mesmo espírito de conquista a todo transe, que caracteriza a nossa moderna expansão para o oeste. Nessa obra de conquista civilizadora da terra, o bugreiro vence o obstáculo material, que é o índio nomade, povoador infecundo da floresta fecunda. Há, porém, um outro obstáculo, o obstáculo jurídico, que é o direito de propriedade. É ao “grileiro” que cabe resolver esta dificuldade. (...) O bandeirante antigo, preador de índios e preador de terras, rude, maciço, inteiriço, brutal, desdobra-se pela própria condição do meio civilizado, em que reponta: e faz-se “bugreiro” insidioso, eliminador do íncola inútil, e “grileiro” solerte, salteador de latifúndios improdutivos. 

 

 

Credo! Se tivesse nascido um século depois esse cara ganharia um ministério do Bolsonaro. Para completar, o jurista ainda adaptava esse direito insano para combater ainda outro “obstáculo à moderna expansão para o oeste”, que ele identifica como “negro fugido”: 

 

 

Não são somente os índios que exigem essa organização defensiva da parte dos senhores rurais: tambem os negros fugidos e acoitados no interior das florestas em núcleos, a que chamam “quilombos”, constituem-se um grave e inquietante perigo para as populações rurais da colônia. Daí a necessidade de grandes expedições guerreiras para atacá-los e destruí-los.

 

Nesse caso, a sublimação que existia na mitologia das três raças foi pras cucuia, voltando a ser violência pura. Oliveira Viana apontava aí, no meio do “mato virgem”, de bugreiros e grileiros, o outro elemento da mitologia, que na história colonial paulista estava mais ligado ao que acontecia pro lado de lá da Serra do Mar: o negro que estava chegando nos portos brasileiros, vindo do sistema de comércios, culturas e relações que se desenvolvia no litoral, a partir da enorme rede transatlântica de tráfico de africanos escravizados.

São Paulo antiga: brancos e pretos

As rotas de navegação transatlânticas eram as veias do sistema colonial no qual o Brasil estava envolvido até os cabelos. Por elas viajavam as mercadorias que alimentavam o conjunto, e também sua energia: a população negra tirada do continente africano para trabalhar forçado em terras americanas. Era um sistema gigantesco, que durou séculos e alimentou o sistema colonial baseado em trabalho escravo. A independência dos países americanos em geral marcaria seu fim. No Brasil não foi diferente, e os acordos internacionais para a consumação e reconhecimento da independência do país obrigavam a uma série de ações que, desde o início do século 19, restringiam o tráfico de escravizados. Para ter reconhecimento e apoio internacional em sua independência e autonomia, o governo brasileiro firmou tratados e acordos garantindo que finalizaria o tráfico de escravizados.

 

Com o perdão de mais um contexto express desse negócio de tratados e acordos para a Independência: todo mundo fala no grito do Ipiranga que o Pedro I deu num corguinho de São Paulo, mas é prudente lembrar também que um país não fica independente depois de um grito — é preciso negociar uma série de acordos nacionais e internacionais para isso se sustentar. Então, o contexto: em 1807 a Grã-Bretanha (que era uma grande potência global) abole o tráfico de escravizados; em 1808 adota medidas para proibir o tráfico nos Estados Unidos, pressionando pela abolição em todo o sistema atlântico. Na mesma toada modernizante, a expansão napoleônica produz uma queda em massa de famílias reais, que faz a coroa portuguesa fugir para a Colônia. A pressão leva o governo português a editar, em 1818, um alvará decretando o fim do tráfico de africanos ao norte da Linha do Equador, e em 1822 o Brasil declara independência. O reconhecimento dessa independência pela diplomacia internacional — pelo governo inglês em particular — estava condicionada ao reconhecimento dessa nova modernidade, na forma de tratados e alvarás que acabavam com o tráfico de escravizados, e que tinham como objetivo substituir a economia colonial por outra, baseada em trabalho livre. Saído da resistência da Coroa Portuguesa à modernidade, o Brasil vai sendo enquadrado: em 1824 Pedro I outorga nossa primeira Constituição — liberal e sem menção ao escravismo -, em 1826 o governo brasileiro formaliza um acordo com a Inglaterra para o fim do tráfico, e em 1831 entra em vigor a lei brasileira que proibia como um todo o tráfico transatlântico de escravizados. Pelos termos desses tratados, o tráfico de pessoas passaria a ser designado como pirataria, e a escravização dos africanos que chegassem ao Brasil seria designada sequestro.

 

Mesmo assim, o sistema escravista brasileiro ainda traficou, desembarcou e escravizou algo como 788 mil africanos, depois de firmados todos esses acordos. De novo, tudo contra a lei, com o governo fazendo vista grossa. Ou melhor, com o governo cultivando e aprimorando o direito estropiado e o disparate jurídico: a escravização ilegal de africanos ao longo do século 19 é o resultado de uma política ativa, que negociava a legitimidade internacional da Independência através de promessas de abolição e constituições liberais enquanto, ao mesmo tempo, espalhava garantias internas aos proprietários rurais de continuidade dessa mesma escravidão. Era um jeito da Coroa Portuguesa continuar existindo e exercendo poder, embora agonizante. Isso produziu gambiarras perversas, um governo que lavrava uma lei mas não a seguia, que produzia instabilidade ao propor objetivos opostos ao mesmo tempo. Essa política malandra e ambígua minava a credibilidade internacional do novo país, relativizando a legitimidade da sua Independência e inquietando a ideia de identidade nacional.

 

Para a região paulista essa história é crítica, já que o período de entrada e escravização ilegal desses 788 mil africanos é também o período inicial das lavouras de café no Sudeste. Ou seja, entre esses escravizados trazidos à força e contra a lei estão muitos daqueles que possibilitaram o famoso boom do café nas fazendas do centro-oeste paulista. Durante a segunda metade do século 19, a cafeicultura em São Paulo explodia por demanda do mercado internacional, justamente porque o tráfico estava sendo proibido nas outras regiões das Américas. Claro: se outras ex-Colônias acabavam com a escravidão, a produção de café diminuia ou ficava mais cara. E as fazendas do Sudeste brasileiro que prolongavam malandramente o escravismo poderiam oferecer mais café por menor preço, já que não tinham que pagar salário para os trabalhadores.

 

O ponto principal é que esses escravizados de fato simplesmente não poderiam ser escravizados segundo a lei vigente. Por consequência, os filhos e descendentes dessas pessoas também não (nisso insistia gente como Luiz Gama e José do Patrocínio). Então, a massa de trabalhadores que sustentou o boom do café no oeste paulista era, a rigor, uma massa de sequestrados, mantidos de forma ilegal na escravidão durante grande parte do século 19. O pacote da Independência incluiu o fim do trabalho escravo, mas esse “fim” se arrastou por quase todo o século 19. E com ele a questão sobre como construir uma estrutura social e política — não escravista — que integrasse toda a população brasileira.

 

Os beneficiários daquela política malandra usaram de meios como tráfico ilegal de pessoas, pirataria, sequestro, cativeiro ilegal, entre outras monstruosidades para conseguirem realizar seu boom e enriquecerem loucamente. Depois de terem inventado o tipo de direito estropiado com relação à escravização indígena nos séculos anteriores, re-inventaram com a escravização negra no século 19. O dinheiro gerado por essas práticas monstruosas enriqueceu as famílias quatrocentonas paulistas, e forma uma das bases da ideia de São Paulo como locomotiva da nação, gente cristã e de bem. Está por trás da publicidade paulista de liberdade, empreendedorismo e farialimers.

 

Os proprietários que cometeram esses crimes deveriam, é claro, sofrer as penas previstas nas leis, mas as nascentes instituições brasileiras — que eram ao mesmo tempo as da agonizante coroa portuguesa — se esforçaram na direção de uma ambiguidade jurídica (e de uma jurisprudência mal-ajambrada/intragável) que se traduziram em anistias e ausência de punições (para os proprietários). Não que esse tipo de ambiguidade não acontecesse também nos países colonizadores, mas como lembra o filósofo Achille Mbembe: “as colônias são o local por excelência em que os controles e as garantias de ordem judicial podem ser suspensos — a zona em que a violência do estado de exceção supostamente opera a serviço da ‘civilização’” [no livro Necropolítica].

São Paulo moderna: branco, preto e vermelho

Ao longo do tempo a dificuldade em atravessar a Serra do Mar vai diminuindo, e no século 19 a construção de novos caminhos e estradas se intensifica: a ligação por trem entre o porto de Santos e o planalto paulista foi inaugurada na década de 1860. As realidades do planalto e do litoral paulista se conectam cada vez mais, vindo dar no atual sistema Anchieta-Imigrantes e nas alegres farofadas de domingo em Santos, Guarujá e região. Essas ligações trazem diversas consequências: São Paulo pode reorganizar suas exportações, dependendo menos do porto do Rio de Janeiro e interiorizando decisões logísticas, políticas e econômicas.

 

É nesse contexto que a oligarquia paulista se organiza para a abolição da escravatura, criando já na década de 1880 mecanismos ideológicos e práticos para operar a substituição do trabalho escravo (negro) por trabalho livre (branco), tomando providências para finalmente substituir a economia colonial pela economia liberal. Ganham força os discursos racistas e eugenistas, e o jornalista Alberto Salles (de Campinas, filho de fazendeiro), por exemplo, não vacilava em expor, no livro A Pátria Paulista (de 1887, logo antes da Abolição), sua opinião de que os paulistas seriam formados por colonos de

 

  

origem limpa, pertencentes muitos à melhor nobreza de Portugal e Espanha. Estes colonos formavam por assim dizer, uma sociedade à parte, não se confundindo com os naturais da terra e nem com os mamelucos. 

 

 

As políticas paulistas do pós-abolição reservaram seus fundos para atrair o imigrante europeu branco (italiano, espanhol, alemão etc.), como nova mão-de-obra. Metade dos 2.3 milhões de imigrantes que desembarcaram em São Paulo entre 1887 e 1928 tiveram suas passagens pagas ou reembolsadas pelo governo de SP. Tome-se como exemplo o Regulamento para Serviço de Imigração da Província de São Paulo, de 1887, publicado logo antes da Abolição:

  

 

Os europeus que espontaneamente vierem para província, além da hospedagem e mais favores dos artigos antecedentes, perceberão ainda como indenização de passagens o seguinte auxílio pecuniário: 70 mil réis por maiores de 12 anos; 35 mil réis por maiores de 7 até 12 anos; 17 mil réis e 500 por maiores de 3 até 7 anos.

 

  

Na sequência, depois da Abolição e da Proclamação da República, a imigração de africanos é proibida em contexto nacional:

  

 

É inteiramente livre a entrada, nos portos da República, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos à ação criminal do seu país, excetuados os indígenas da Ásia, ou da África que somente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admitidos de acordo com as condições que forem então estipuladas. (Art. 1º do decreto nº 528, de 28 de junho de 1890). 

 

 

A grande tragédia dessa política é a opção deliberada pela não integração dos brasileiros negros, indígenas e seus descendentes que já viviam aqui. Ou melhor, a opção por integrá-los de forma precária, à margem do conjunto de direitos, em uma espécie de infra-cidadania. Era a nova (velha) invenção da identidade paulista, que buscava produzir distância dos povos negros e indígenas (a força de trabalho que havia sido escravizada) através de formas de favorecimento a imigrantes brancos de partes específicas do globo. A consequência foi a integração precária dos egressos do escravismo e seus descendentes.

 

O fluxo de imigrantes é interrompido pela 1ª Guerra Mundial, na década de 1910. Com o fim da guerra, os anos modernistas da década de 1920 são marcados por estratégias políticas e discursos que buscavam retomar aquela corrente migratória. No tempo da Semana de Arte Moderna de 22, completava-se um século da independência do país, e a presença (com integração precária) da população de africanos, indígenas e seus descendentes continuava sendo um foco de conflitos. Nesse tempo, um grupo de poderosos insistia em moldar um passado lendário para os paulistas, que excluía de sua identidade as populações negras e indígenas, forjava um bandeirantismo mítico e uma ideia de nacionalidade. Por exemplo, o que escrevia em 1922 Júlio de Mesquita Filho (dono do jornal O Estado de São Paulo e fundador da Universidade de São Paulo), na Revista do Brasil:

  

 

Somos fortes, somos ainda dignos do passado das bandeiras, justamente porque às enganosas vitórias da política militante, sabemos ainda preferir as rudes vitórias que pontilham a história da nossa evolução. (...) Nos momentos capitais da história nacional, de São Paulo sempre partiu a palavra que haveria de decidir os destinos da nacionalidade. [em A Comunhão Paulista, Revista do Brasil, 1922, ano VII, v. XXI, nº 84.] 

 

 

Três anos depois, em 1925, em um editorial de seu jornal, publicava a seguinte reflexão: 

 

 

Promulgado o decreto de 13 de maio [que declara extinta a escravidão no Brasil], entrou a circular no sistema arterial do nosso organismo político a massa impura e formidável de 2 milhões de negros, subitamente investidos das prerrogativas constitucionais. A esse afluxo repentino de toxinas, provocado pela subversão total do metabolismo político e econômico do país, haveria necessariamente de suceder grande transformação na consciência nacional que, de alerta e cheia de ardor cívico, passou a apresentar, quase sem transição, os mais alarmantes sintomas de decadência moral. [em O Estado de São Paulo, 15/11/1925] 

 

 

Credo. É mais ou menos nessa toada que outra figura — um historiador, Deputado Estadual paulista e membro da Academia Paulista de Letras chamado Alfredo Ellis Júnior — expunha seu pensamento, entre outros, em 1926, no livro Raça de Gigantes. Aí desenvolve um modelo particular para a mestiçagem em São Paulo:

 

 

Os cruzamentos com o negro são tão recentes que entre nós os mulatos disfarçados são raríssimos, imperando em grande maioria os meio sangue, os quarteirões e os oitavões, e nos quais é fácil descobrir-se os estigmas da raça de ébano. (…) o negro e o mulato têm uma mortalidade pela tuberculose pulmonar 9 vezes maior do que o branco, (...) o que prova que o clima planaltino está selecionando o negro e o mulato, poupando o branco que tem o aparelho respiratório mais forte.

 

 

Isso levaria à “gradual eliminação seletiva do mulato, que vai desaparecendo da nossa população”, ressoando e atualizando a velha tese de Von Martius. Inventava determinismos toscos de clima e raça para justificar a violência e manter negros e indígenas em situação precária. No conto “Túmulo, túmulo túmulo”, de Mário, também escrito em 1926, o personagem Ellis é preto e morre de tuberculose. Para Mário de Andrade, é óbvio que não por ter sido “selecionado” pelo clima do planalto, mas por ter sido submetido ao passivo colonial paulista, à infra-cidadania e às políticas desastrosas do pós-abolição. Ressoaria o nome do personagem de Mário com o do deputado paulista? Inverter as posições de Ellis e Ellis me parece de fato uma boa estratégia.

 

A estrutura de preconceito de Ellis Jr. e sua “Raça de Gigantes” mira também o nordestino, que na primeira metade do século 20 estava migrando em grande número para São Paulo: 

 

 

O nordestino tem sangue preto, e tem conformação osteológica diferente da nossa, transparecendo em seus crânios chatos e largos, em sua cor de charuto a grande influência de índio. O nordestino não tem outro estoque racial, não se fixa, é volante. Felizmente o nosso sistema racial está livre de sofrer a influência dessa gente. O japonês é incalculavelmente melhor para nós e para o nosso corpo social, pois existe entre nós e os japoneses mais afinidades do que entre nós e os nordestinos. 

 

 

O Ellis Jr. se achava mais parecido com um japonês do que com outro brasileiro! A sensação de diferença forma as bases do preconceito paulista e vem desaguar no seu movimento separatista: às vésperas da Revolução de 32, podia-se ler no editorial do jornal O Separatista (fundado por Rubens Borba de Morais com colaboração de Ellis Jr.): 

 

 

O separatismo paulista não é um ideal novo. Sempre existiu. Se hoje, porém, a vontade de separar São Paulo desse Brasil tropical é uma ideia triunfante que se apoderou da maioria dos paulistas, é porque mais que nunca sentimos quanto nos custa esse peso morto, quanto ele nos embaraça, quanto ele é diferente de nós, quanto ele nos odeia... A separação de São Paulo do Brasil é uma fatalidade histórica. Mais, é uma fatalidade econômica. 

 

 

Bom, São Paulo não se separou do Brasil, mas as políticas ellistas de não-integração e infra-cidadania para uma parte imensa da população seguem se atualizando — 100 anos depois da Semana de Arte Moderna e 200 depois da Independência. Nessa história de três raças, uma delas (a branca) retirou-se malandramente da racialização, colocando-se como portadora de uma espécie de hegemonia, mezzo abstrata mezzo metafísica, coberta pelos fumos divinos de uma suposta superioridade civilizatória autoproclamada, que formaria a base de um poder sobre as outras, essas sim, “raças”.

Identidades sobrepostas: Joaquim Prestes, Belazarte e Sanches

Na acelerada modernização do século 20, o planalto paulista se conecta cada vez mais com o sistema atlântico e com as práticas globais. Mas o caipira, a gente da roça, as comunidades indígenas, os costumes e culturas tradicionais seguem estando lá, e aquela modernização explosiva é também uma superposição de realidades conflitantes. O plano temporal das dinâmicas velozes da industrialização, dos transatlânticos, das linhas de ferro, dos bondes, das tecnologias, da comunicação à distância, das conexões internacionais, do mercado liberal, da indústria cultural, do crescimento vertiginoso, vão trombando e se encavalando com as temporalidades lentas, a persistência e cultivo de costumes seculares, de mentalidades tradicionais, de práticas familiares, da economia colonial, de modos caipiras, da preguiça, do bagre sorna, de hábitos locais e outras velocidades de sociedades menos conectadas. A superposição desses tempos diferentes — moderno e tradicional, rural e urbano — marca muito da produção dos modernistas, que procuraram dar forma artística a essas sobreposições, com resultados diversos. Dito assim de um jeito bem brusco: no Modernismo paulista gente caipira começa a ser representada em estética futurista; elementos de cultura indígena local são submetidos a processos internacionais, cubistas por exemplo; figura e fundo se misturam em paisagens bucólicas; africanismos são mesclados a processos da vanguarda europeia; tecnologias recentes interagem com culturas tradicionais, entre tantas soluções diferentes para a sensibilidade do tempo.

 

Mário de Andrade é um dos escritores modernistas a quem interessou pensar, através da literatura, as mentalidades e a psicologia social dessa época. Ele mesmo explica, em carta a um tio, que uma das coisas que o interessava em literatura era tentar construir um personagem que fosse “representativo de uma dada mentalidade brasileira numa dada época psicossocial do Brasil” [em Pio & Mário: Diálogo da Vida Inteira]. Penso que nos três contos juntados aqui, além de tantas coisas, há uma intenção de Mário em estudar, de diversos ângulos, uma subjetividade específica: aquela do proprietário branco paulista, na cidade, no campo e no mato, no contexto do pós-abolição e da onda modernizante que segue em São Paulo. São as figuras de Belazarte, Joaquim Prestes e Sanches. Neles, Mário procura captar e descrever a existência difícil de uma burguesia que se fez pela via liberal-autoritária: não renuncia nem aos velhos costumes coloniais nem à nova modernidade. Cria assim personagens complexos, intrincados, contraditórios, tradicionais e modernos a um só tempo. Ambíguos em relação a eles mesmos, respondem à nova sensibilidade modernista.

Joaquim Prestes

Talvez o personagem onde esse equilíbrio frágil esteja mais bem construído seja Joaquim Prestes, o fazendeiro de O poço. Aliás, o próprio tio de Mário, a quem ele explicava em carta suas intenções literárias (na verdade um primo a quem ele chamava de tio), parece ser uma das fontes reais do escritor para a construção do personagem: o tio Pio era um fazendeiro do interior de São Paulo com aspirações cultas, que cultivava saberes universalistas, naturalistas, tinha viajado pela Europa, falava diversas línguas, tinha uma biblioteca etc. Mário frequentava a fazenda e a biblioteca desse tio, ambiente que serviu como fonte de inspiração para a escrita de O poço. Em uma crônica publicada no Diário Nacional (em Julho de 1930), Mário narra uma pescaria que tinha feito na região: 

 

 

Quando chegamos na barranca do Mogi-Guassu, já andadas oito léguas de cabriolante forde, era madrugada franca. O rio fumava feito gente, no inverninho delicioso. Vento, nada. E a névoa do rio meio que arroxeado, guardando na brancura as cores do futuro sol.

 

Estivemos por ali, esquentando no foguinho caipira, que é o cobertor da nossa gente. Estivemos por ali, esfregando as mãos, tomando café, preparando as varas. Eu, como não tinha esperança mesmo de pegar nenhum dourado, fui pescar iscas no ceveiro. Isso era atirar anzolzinho desprezível nágua, vinha cada lambari enganado, cada tambiú e uma piauvinha comovente. [em Táxi e Crônicas no Diário Nacional

 

 

Não é parecido com o que depois foi virar o conto O poço? O escritor usou também (como foi apontado pelo crítico literário Luiz Roncari) uma descrição que seu tio Pio havia feito, em carta, de uma “casinha”, ou banheiro externo, de uma fazenda da região: 

 

 

Era uma casinha de madeira, com paredes de tábuas fixadas horizontalmente, e assoalho alto, a mais de 2 metros do solo. Sob o assoalho não havia paredes: — era tudo aberto dos baldrames abaixo, e por ali andavam livremente os porcos de ceva, que por vezes somavam mais de 50 cabeças (escravatura a sustentar, muito gasto de gordura). 

 

 

Essa descrição também foi parar no conto, devidamente adaptada para seus fins literários. Penso que Mário usou elementos reais de sua experiência no interior de São Paulo para descrever o tipo de personalidade que o interessava: o proprietário paulista branco, fazendeiro, do interior, que busca se integrar ao pós-abolição, que quer se modernizar, mas sem abandonar os costumes estabelecidos do sistema escravista. Uma figura que incorpora tempos sobrepostos: novas tendências liberais e velhos costumes coloniais. Usou também a si mesmo e sua experiência na fazenda para compor o personagem “convidado”, que observa meio de fora a dinâmica do lugar.

 

Tendo um pouco de “tio Pio”, Joaquim Prestes é um fazendeiro culto, fala alemão fluente, possui uma biblioteca de obras científicas, viaja para a Europa, inventa modas, sabe tudo sobre carros, tudo sobre abelhas e se porta como um burguês esclarecido. Com isso, cultiva sua autoridade, ao redor da qual orbitam funcionários, agregados, dependentes e outros moradores da fazenda. Como dono de tudo, Joaquim Prestes desconta do salário do funcionário a janela que ele quebrou. Também como paternalista de bom coração, compra remédios caros, fortificantes importados, comportando-se como protetor de toda a gente, chefe bondoso, que se importa e cuida da saúde de seus trabalhadores etc. Mas é só perder uma caneta insignificante para virar a chave e se comportar segundo o aparato escravista mais cruel e antiquado. A partir daí, perder a caneta ou sacrificar a vida daquele mesmo funcionário com quem se importa são a mesma coisa. Aliás, “virar a chave” é uma expressão ruim, pois em Joaquim Prestes é como se os dois lados da chave estivessem ligados ao mesmo tempo, sempre, com voltagens e combinações oscilantes.

 

Mário busca representar um tipo do interior paulista: o fazendeiro moderno-bondoso-autoritário cuja alma encerra “uma dada mentalidade brasileira numa dada época psicossocial”, cuja consciência está alimentada por voltagens oscilantes de ideias excludentes entre si. O resultado é meio doido, mas também uma forma de manter um poder amplo, ao mesmo tempo liberal e colonial. A ambiguidade é fonte de inquietação, de desconcerto interior e exterior permanentes, de mãos se esfregando lentíssimas à la Michel Temer, de desidentificação, de um desequilíbrio específico: seus gestos também são permeados por uma semiconsciência de culpa lavrada pelos séculos.

 

Para mim, Mário estava extraindo de sua própria experiência paulista a forma da composição. Com Joaquim Prestes, o escritor dá vida literária ao fazendeiro branco, herdeiro mais ou menos consciente do espírito bandeirante (gente escoteira por aqueles campos altos, desbravadora de terras), que cultiva novidades humanistas europeias sem ver problema em tratar os funcionários de sua fazenda com usos e costumes locais, coloniais. Aquele que busca usar as vantagens desses dois mundos quando lhe convém e descartá-las quando não convém. Mas a mesquinharia de quase sacrificar a vida de um funcionário — por causa de uma caneta da qual ele nem precisa — denuncia a fanfarronice de sua modernidade: o cultivo do espírito ilustrado, da biblioteca, do racionalismo, do conhecimento, do humanismo etc. são ao mesmo tempo enfeite, ornamento, marca de fidalguia. Ou como teorizava um amigo de Mário, Sérgio Buarque de Holanda, em 1936:

  

 

O trabalho mental, que não suja as mãos e não fatiga o corpo, pode constituir, com efeito, ocupação em todos os sentidos digna de antigos senhores de escravos e dos seus herdeiros. Não significa forçosamente, neste caso, amor ao pensamento especulativo — a verdade é que, embora presumindo o contrário, dedicamos, de modo geral, pouca estima às especulações intelectuais —, mas amor à frase sonora, ao verbo espontâneo e abundante, à erudição ostentosa, à expressão rara. É que para bem corresponder ao papel que, mesmo sem o saber, lhe conferimos, inteligência há de ser ornamento e prenda, não instrumento de conhecimento e de ação. [no livro Raízes do Brasil

 

 

É como Joaquim Prestes, que não tivera que construir a riqueza com a mão, dono de fazendas desde o nascer, reconhecido como chefe novo ainda, bem rico, meio sem quefazer. O trabalho não existe como fator constitutivo de sua posição poderosa nem de sua subjetividade. Dentro dessa alma ambígua, a velha violência colonial é um passivo que cobra seus juros em tensão: ter que reconhecer o novo status dos trabalhadores da fazenda (são livres, podem pedir demissão, cobrar direitos e expressar suas vontades) eleva a voltagem das relações e entra em conflito com a chave do espírito que alimenta a sensação de herdeiro, e que não quer se conformar à nova situação: 

 

 

O ambiente estava tensíssimo. (...) Minutos antes, poço quase seco agora, o magruço que já vira um bloco de terra se desprender do rebordo, chegada a vez dele, se recusara descer. Foi meio minuto apenas de discussão agressiva entre ele e o velho Joaquim Prestes, desce, não desce, e o camarada, num ato de desespero se despedira por si mesmo, antes que o fazendeiro o despedisse. (...) A despedida do operário o despeitara ferozmente, ficara num deslumbramento horrível. Nunca imaginara que num caso qualquer o adversário se arrogasse a iniciativa de decidir por si. Ficara assombrado. Por certo que havia de mandar embora o camarada, mas que este se fosse por vontade própria, nunca pudera imaginar. A sensação do insulto estourara nele feito uma bofetada. Se não revidasse era uma desonra, como se vingar!... 

 

 

O magruço é um trabalhador livre — Joaquim Prestes concorda com isso e nunca imaginou que ele pudesse pedir demissão. O magruço é um trabalhador livre — Joaquim Prestes concorda com isso e sente que pode fazer uso dele até o limite para satisfazer uma mesquinharia, como por exemplo recuperar uma caneta. Tudo ao mesmo tempo, sobreposto, misturado.

 

E a caneta, coitada, centro da discórdia, vale nada quando comparada à vida de uma pessoa (quer dizer, levando em conta uma sensibilidade humana). Considerada apenas em si mesma, a caneta é um objeto desimportante, sem nada de mais, e Mário descreve didaticamente como Joaquim Prestes tinha muitas outras guardadas em seu escritório. O caso é que tudo muda loucamente durante os segundos velozes nos quais essa caneta vai do bolso do fazendeiro até afundar na lama do poço. A caneta, de repente, recebe uma espécie de transferência metafísica, uma carga insana de um pedaço da alma de Joaquim Prestes, tornando-se portadora de algo muito maior do que aquilo que ela simplesmente é: parece ter sido investida de uma carga alegórica, elétrica, um feitiço, virando símbolo provisório do imenso poder do fazendeiro. E ela agora, imantada de poder, objeto meio místico, servindo pra escrever sozinho, está na lama, no fundo do poço. A partir daí, o fazendeiro se transforma, endurece, fissurado, fica rude, maciço, inteiriço, brutal, não treme nada. Toda reflexão sensata está suspensa, a chave colonial do fazendeiro vai no talo e eletriza o conto, alimentando a tendência geral de sacrificar os funcionários em lugar da caneta.

 

A realidade ambivalente domina, e a energia fissurada de Joaquim Prestes escravista ressoa nos personagens. Em contraste, a energia modernizante, diametralmente oposta, brota no magruço, que pede demissão e cai fora (não sem consequência: se fora, dando as costas a tudo, oito anos de fazenda, curtindo uma tristeza funda, sem saber). Com isso, a energia colonial explode em Joaquim Prestes, completamente tomado por aquela decisão já desvairada de conseguir a caneta-tinteiro, custasse o que custasse. Os olhos do velho engoliam a boca do poço, ardentes, com volúpia quase. Inflexível, ele não entendia mais nada. Essa energia obseda Albino (aquela mansidão doentia de fraco) que, para evitar briga maior e responder ao chefe, mesmo sendo doente do peito (provavelmente tuberculose) segue arriscando sua vida (no fundo do poço úmido e gelado), por causa de uma caneta.

 

Ressoando e desdobrando aquela mesma energia modernizante e racional que o magruço havia chamado para a cena, o freio que o funcionário José põe na sanha escravista de Joaquim Prestes é o ápice do conto e, pra mim, um dos momentos mais comoventes da literatura de Mário: 

 

 

José parou de esfregar o irmão. Se virou pra Joaquim Prestes. Talvez nem lhe transparecesse ódio no olhar, estava simples. Mandou calmo, olhando o velho nos olhos:

 

— Albino não desce mais.

 

Joaquim Prestes ferido desse jeito, ficou que era a imagem descomposta do furor. Recuou um passo na defesa instintiva, levou a mão ao revólver. Berrou já sem pensar:

 

— Como não desce!

 

— Não desce não. Eu não quero.

 

Albino agarrou o braço do mano mas toma com safanão que quase cai. José traz as mãos nas ancas, devagar, numa calma de morte. O olhar não pestaneja, enfiando no do inimigo. Ainda repete, bem baixo, mas mastigando:

 

— Eu não quero não sinhô. 

 

 

José, o funcionário, recolhe e organiza a energia oposta à do patrão, que estava espalhada pelo conto, conseguindo impor limite à sua loucura liberal-escravocrata. E Joaquim Prestes, o mal pavoroso que terá vivido aquele instante...

 

Penso que Joaquim Prestes é o tipo que começava a ser obrigado — pelo mercado, pelos funcionários, pelo tempo, por tudo — a perceber a necessidade de transformar as práticas arcaicas aos padrões da nova economia global. Coisas que, no fim das contas, não eram somente objetivos humanitários, mas iriam facilitar o desdobramento do capital dos novos empresários. Esse “fazendeiro com limites” é, aliás, uma das figuras paulistas centrais da estrutura social paulista na virada do século 20: aquele que começa a transformar as vantagens dos séculos escravistas nas formas mais elaboradas de conduta empresarial. O proto-Dória. Não por bom coração ou humanismo, mas para superar obstáculos muito claros ao desenvolvimento da produção: ter que depender mais da autoridade que da eficácia, mais do revólver que do planejamento racional, insistir em não contratar mão-de-obra especializada (gente da fazenda que entende um pouco de tudo em vez do poceiro de profissão), evitar o prejuízo de sacrificar a vida de um trabalhador por orgulho mesquinho etc.

 

Nesse ponto, uma olhada nos manuscritos originais de O poço revela um detalhe que me parece bem interessante (e que alivia um pouco o lado do tio Pio): originalmente, o Mário tinha ficado em dúvida entre diversos nomes para o personagem de Joaquim Prestes. Entre eles: seu Prado e seu Prestes. Nas primeiras versões datiloscritas do conto (que estão no Arquivo do IEB/USP), seu Prado como nome do fazendeiro aparece rasurado e substituído por seu Prestes. Quem reconhecer os sobrenomes talvez pense — como eu -, que mais que o tio Pio, Mário mirava como modelo a oligarquia cafeeira tradicional-moderna paulista do tempo da República Velha, cujas famílias eram donas de enorme poder, quantidade de terras, e cuja prole inclui políticos, empresários e donos de muitas coisas.

 

Herdeiros da aristocracia rural, Prados e Prestes são a elite econômica, dirigente e intelectual paulista empenhada na transmutação dos costumes coloniais em liberais (por exemplo com a implementação das políticas de imigração subvencionada), convertendo-se nos novos empresários. Suas atividades se espalharam por vários setores da economia e da política: agricultura, comércio, transporte, indústria e finanças. Antonio da Silva Prado tinha sido prefeito da cidade de São Paulo e implementado o sistema de bondes, energia elétrica e rede ferroviária. Fernando e Júlio Prestes, pai e filho, foram presidentes do Estado de São Paulo, estando também envolvidos nas providências para construção de estações e ramais ferroviários, estradas, serviços telefônicos, bancos, entre outras diversas providências para transformar o território colonial em moderno. Os signos velozes dessas novas estruturas se sobrepunham, mudando rapidamente paisagens naturais, arquitetônicas e sonoras: em 1907 São Paulo já era o segundo Estado brasileiro com maior atividade industrial. Prados e Prestes faziam parte da oligarquia cafeeira paulista que desejava dinamizar a economia e se afinar ao novo contexto liberal, sem o prejuízo de seu capital ter sido gerado e multiplicado pelos mecanismos criminosos do escravismo. Nessa toada, fizeram parte da elite que operou a transmutação dos modos escravistas em modos empresariais, sem que nenhuma mudança estrutural ocorresse na economia agro-exportadora baseada na monocultura. Consequentemente, sem nenhuma mudança na estrutura de dominação social.

 

Um dos membros da família Prado foi, inclusive, idealizador e mecenas da Semana de Arte Moderna de 1922. A ele Mário de Andrade dedicou seu Macunaíma, e sobre ele escrevia em 1942:

  

 

Paulo Prado, ao mesmo tempo que um dos expoentes da aristocracia intelectual paulista, era uma das figuras principais da nossa aristocracia tradicional. Não da aristocracia improvisada do Império, mas da outra mais antiga, justificada no trabalho secular da terra e oriunda de qualquer salteador europeu, que o critério monárquico do Deus-Rei já amancebara com a genealogia. [na conferência O Movimento Modernista

 

 

Enfim, o personagem de O poço não ficou sendo nem seu Prado e nem seu Prestes, mas Joaquim Prestes: a figura ambivalente, da passagem, aristocrata intelectual oriunda de qualquer salteador europeu, na qual traços liberais e coloniais — modernos e conservadores — convivem amontoados. É o protótipo do tipo “liberal na economia, conservador nos costumes” do nosso tempo. Joaquim Prestes tem um pouco de tio Pio, um pouco dos Prado, um pouco dos Prestes, um pouco do próprio Mário. Responde como dinâmica formal à classe branca proprietária paulista no pós-abolição — classe dominante da República Velha — em particular àquela dona de terras, fazendeira, que busca modernizar suas práticas afinando-se ao mundo liberal, reorganizando, aprimorando e modernizando características funcionais do costume colonial, conjugando instáveis vontades progressistas e posições autoritárias.

Belazarte

Em Túmulo, túmulo, túmulo, o personagem Belazarte é uma espécie de “primo da capital” de Joaquim Prestes — mas com traços metropolitanos e cosmopolitas mais acentuados, um pouco mais curtido no cadinho da calcinação entre colonial e liberal. Enquanto Joaquim Prestes cai mais para o mando pessoal direto, Belazarte vai mais para a indiferença capitalista. Mas a fundição de novidades modernas com atavismo escravista brasileiro segue empilhando ambivalências em sua alma paulistana descolada. Não tem jeito: antes da história começar, o próprio título do conto já impregnou tudo — relações, acordos, amizades — com seu anticlímax urubuzento de mau-agouro, spoiler de todo o desenrolar do conto. Vai dar tudo muito errado, túmulo, túmulo, túmulo, e o nome do personagem tem “azar” no meio. Cruz-credo. “Caso triste foi o que sucedeu lá em casa mesmo...”.

 

 Belazarte tem um jeitão liberal desconstruído da capital, com características sapaécio do individualismo de cidade grande: diz que não sente falta nem depende de ninguém, se acomoda bem na impessoalidade, tem emprego, ganha bem, negocia terrenos, cultiva alguma sofisticação, fala francês, cita Rilke, consegue superar seu ciúme, cumpre os combinados, vai pra lá e pra cá de bonde, enfim! vive o processo de modernização paulistano do início do século 20. Mas tudo isso se relativiza na relação com a família negra de Ellis: em uma espécie de capricho de gente rica, Belazarte resolve desejar ter um criado só pra ele — mas que tinha que ser brasileiro e preto. Mário de Andrade é bem didático: mesmo com o crescimento da nova economia baseada em trabalho livre e a decorrente modernização encomendada pelos paulistas na virada do século, a fantasia do proprietário branco segue cultivando, desejando e querendo o vínculo escravista, brasileiro e preto.

 

O escritor cria uma personagem que declara em primeira pessoa suas construções mentais, que a um só tempo costuram costumes liberais e escravistas. Ao longo do caso triste que sucedeu em sua casa, o narrador vai se entregando e cometendo diversos sincericídios. Com essa personagem, Mário agrega outro retrato afiado e sofisticado, agora na capital, das mentes paulistas que estavam vivendo essa espécie de meio do caminho entre costumes coloniais e liberais. Nessa dinâmica, ao longo do conto, diversos termos, acordos e características ligados à cultura moderna vão se desenvolvendo ao mesmo tempo na dimensão da interdependência, do favor pessoal e dos tiques escravistas.

 

Mário faz o próprio Belazarte descrever como a sua consciência liberal se desdobra nos usos e costumes da antiga família colonial expandida. Logo no início do conto, o narrador faz uma descrição dessa esquisita fantasia liberal-escravista que o habita: 

  

Dinheiro faz cócega em bolso de brasileiro, enquanto não se gasta não há meios de sossegar, pois imaginei ter um criado só pra mim. Achava gostoso esses pedaços de cinema: o dono vai saindo, vem o criado com chapéu e bengala na mão, “Prudêncio, hoje não bóio em casa, querendo sair, pode. Té logo”. “Té logo, seu Belazarte.”

  

 

No trecho, Mário compõe um misto complexo de temas e imagens tanto modernas quanto coloniais, que a despeito de sua contradição formam um pensamento único. A frase que começa tematizando a contemporaneidade do dinheiro e o imperativo do consumo conduz não ao desejo de um empregado, um ajudante, um faxineiro ou um secretário, mas de um criado — palavra ambígua que, além de designar o serviçal doméstico, remete aos tempos coloniais brasileiros (era a pessoa pobre criada em uma casa de família proprietária, à qual ficava devendo obediência, favores domésticos e gratidão pela benfeitoria). Quer dizer, a palavra criado gera uma ambivalência entre seu significado moderno/colonial. Ambiguidade que se desdobra na sequência: volta ao contexto moderno na próxima frase, na forma modernérrima de pedaços de cinema — cortes, edições, chapéu e bengala à la Chaplin. Um corte brusco o joga novamente ao colonial: o criado se chama “Prudêncio”, nome inesquecível do escravizado da casa de Brás Cubas, em suas Memórias Póstumas (romance de Machado de Assis). Isso a um só tempo reforça o contexto duplo da palavra “criado” e conecta a alma de Belazarte à de Brás, em uma espécie de continuidade entre os modos dos proprietários (Belazarte/Brás) com seus criados (Ellis/Prudêncio). Completando o circuito das imagens liberal-escravocratas, esse patrão descolado, que não bóia em casa, que conversa de igual pra igual com o funcionário, com quem cultiva amizade (como Belazarte se descreve) acaba chamando a si mesmo não de patrão, mas de dono do funcionário. A formulação produz uma ambiguidade que vai se replicar em diversos sincericídios ao longo do conto: “secretamente achava que ele devia só pensar em ser meu criado”, ou ainda “meio que me despeitava também, isso do Ellis gostar mais de outra pessoa que do patrão”.

 

Para mim, Belazarte — além de ser “primo da cidade” de Joaquim Prestes -, é também uma espécie de parente paulista mais moderno de Brás Cubas (o narrador sofisticado de Machado que se entrega o tempo todo), e Túmulo, túmulo, túmulo talvez seja um dos contos mais machadianos de Mário. Nesse conto, como em vários romances do mestre do Cosme Velho, a prosa vai desenrolando os vínculos problemáticos de interdependência entre personagens da camada proprietária com as da camada pobre. Além de Prudêncio, poderíamos pensar em outros paralelos com os personagens de Machado que são livres mas dependentes, como entre Ellis e José Dias: ambos poderiam sim ir à Europa, mas só se o proprietário quisesse. Ou ainda entre Ellis e Dona Plácida: funcionários que são “quase da família”, mas cujo salário (baixo) mantém a dependência e impede que seu trabalho evolua para a criação de novas perspectivas para suas vidas. Enfim, como diversos personagens machadianos (e suas famílias coloniais expandidas), Belazarte é um tipo liberal com dependentes, e se relaciona com eles segundo uma fantasia neocolonial que não é esvaziada de afeto. Em seu discurso, Belazarte parece dourar sua bondade ao descrever a dependência de Ellis e tutti quanti como protegidos de sua família, insinuando que, sem sua ajuda, ficariam jogados ao deus-dará.

 

Há também, claro, muitas diferenças em relação ao estilo machadiano. No conto, a relação entre Belazarte e Ellis começa a ser descrita não pela dependência ou pelo conflito, mas — bem de acordo com a nova chave modernista (de Mário em particular) — através da admiração de Belazarte por Ellis, com descrições dos olhos, da pele, da cor, tudo com uma intensidade quase erótica (ou descaradamente erótica?). Essa admiração refinada e modernista de Belazarte, entretanto, já vem modulada pelos preconceitos brasileiros:

  

 

Ellis era preto, já disse... Mas uma boniteza de pretura como nunca eu tinha visto assim. 

 

 

Esse “mas” aplica no fluxo de admiração uma adversativa na qual o costume colonial (do tipo “é preto mas é honesto”, “é pobre mas é limpinho”) é exposto involuntariamente pelo narrador (e voluntariamente pelo escritor). Está posicionado por Mário de Andrade na boca do personagem para que assim ele se entregue a si mesmo — a lição de ouro machadiana.

 

O conto segue, e Belazarte faz um gesto de aproximação que evolui para o acordo independente de patrão e empregado, mediado por salário e obrigações consentidas etc. Mas o vínculo dos contratos, firmados em comum acordo entre as partes, de forma racional, vai exalando em escala logarítmica olores de dependência, e as tendências claras e contratuais do profissionalismo vão se contaminando em compaixão, “bom coração”, pena, dó e favor — pura linguagem familista Brasil Colônia. Desde oferecer um bico para encerar a casa, passando por emprestar dinheiro, ser padrinho de casamento, padrinho do filho, até emprestar uma almofada ou uma meia, tudo é de favor, ação paternalista, não mais exatamente de interesse e acordo comum. Até mesmo o ato de visitar o amigo em seu leito de morte está modulado pela boa vontade (má vontade) do proprietário.

 

E no contexto familista colonial, os tiques preconceituosos de Belazarte vão aparecendo de forma explícita. No batizado de seu afilhado (papel que havia aceito por pena), revela que queria que o bebê se chamasse Benedito — pois era “nome abençoado de todos os escravos sinceros”. Ainda que Belazarte entendesse isso como uma espécie de “homenagem”, sua fala expõe a relação direta, preconceituosa e sincericida que faz entre Ellis, seus descendentes, escravidão e necessidade de benção. Como a avó do recém-nascido rejeita esse nome, Belazarte segue:

  

 

Então pus autoridade na questão e cedendo um pouco também, acabamos carimbando o desgraçadinho com o título de Luís.

  

 

O trecho todo tem um vai e vem estranho e sádico: Belazarte renuncia ao “nome abençoado de escravo sincero” que tinha escolhido, retrocedendo um pouco de sua postura senhorial autoritária. Por outro lado, a mesma postura aparece ao usar o termo “carimbando”, que concentra, revela e repõe em outro lugar o ranço escravista do pretenso moderno: carimbo, em português, deriva de termos centro-africanos (ki-dimbu, kindimbu) para instrumentos usados em marcas de identificação tribal. No contexto escravista brasileiro, virou nome da peça de ferro que era esquentada no fogo para marcar a pele do escravizado, indicando coisas diversas como origem, pertença e quitação de impostos. No contexto pós-escravista paulista, “carimbar o desgraçadinho” é um detalhe de horror sádico, que no espaço de uma frase repõe o escravismo do qual o narrador havia retrocedido, inclusive adicionando o mau-agouro da desgraça (o contrário da benção que o outro nome traria) e levando junto a família da criança (através do uso do plural, ou seja, avó e família também carimbaram). E ainda por cima “com o título de Luís”, onde a palavra ‘título’ para o nome ‘Luís’ está cheia de veneno sarcástico euro-colonial.

 

Há ainda os momentos em que o preconceito é afirmado sem vai-e-vem:

 

  

Não paga a pena a gente imaginar que todos somos iguais, besteira! 

 

 

Mais um sincericídio onde o narrador deixa claro seu pressuposto de desigualdade, sua crença de que pobres e ricos são diferentes, e consequentemente sua presunção de superioridade.

 

Adaptando um pouco os ensinamentos de Roberto Schwarz sobre Machado de Assis, digamos que a fala de Belazarte é uma sobreposição modernista de planos diversos: ao mesmo tempo formula ideias derivadas do Liberalismo (aquelas que têm como pressuposto a racionalidade dos contratos, a clareza das vontades individuais, o elogio à fraternidade, à igualdade, à liberdade etc.) e ideias derivadas do paternalismo brasileiro (que cultiva obrigações da família colonial expandida, deveres de parentela, protecionismos de afilhados, sensação de diferença entre seres humanos, presunção de superioridade, dependência pessoal, dívidas sentimentais, necessidades de amparo, arrimo e proteção, vínculos de submissão, obediência e sujeição etc.). Ao longo do conto, a linguagem burguesa e os vínculos da piedade familiar vão sendo modulados e multiplicados um pelo outro, resultando no discurso oscilante do narrador. Nesse estranho monólogo lapidar, o amor ao próximo fica sendo ao mesmo tempo superioridade, e a amizade entre iguais fica sendo ao mesmo tempo submissão.

Sanches

Que a gente não se deixe levar pelo “desta vez vamos entrar no mato-virgem” que abre o Caso em que entra bugre, e que induz o leitor para o estilo oral das lendas, causos e histórias de pescador. Lembrando um pouco o registro arquetípico do “era no tempo do rei”, com o qual Joaquim Manuel de Macedo abriu suas Memórias de Um Sargento de Milícias, a frase que abre o conto de Mário propõe o andamento oral e, digamos, “inventivo” do causo, ao mesmo tempo em que desenrola características bem reais de seus personagens. Aliás, a primeira versão do conto, publicada no Diário Nacional (em 14 de julho de 1929), é diferente de todas as outras: tem a presença, logo após o título, de uma frase entre parênteses: “(observação: a base deste conto é verdade, me contada por pessoa de respeito)”. Colocada em um jornal de circulação cotidiana, ficamos sem saber se essa é uma informação verídica que o escritor queria dar ou faz parte da criação literária. De qualquer modo, para mim, o resultado é o reforço no clima de história de pescador e de “é verdade esse bilete”. Contrastando com essa camada, entretanto, Mário indica lugar e tempo bem definidos: o interior paulista, na região de Campos Novos, no tempo do pós-abolição e da pretensa substituição dos senhores de escravos e caudilhos por delegados, oposição e chefes políticos — ou ainda, tempo de implantação da lei e da racionalidade democrática em lugares onde elas ainda não haviam chegado.

 

O resultado é que, já no primeiro parágrafo, os traços dessa racionalidade são desacreditados como história de pescador, e delegados, caudilhos, chefes políticos e senhores de escravo se misturam em uma espécie de equivalência geral, figurada nos usos e costumes de um grupo de proprietários brancos — no personagem de Sanches em particular — e sua relação com grupos indígenas que habitavam a região. Sanches é descrito logo de cara como um ditador bruto, imperialista local, rude, de autoritarismo extremo, sem um pingo de racionalidade, que mete bala sem dó se você ou seu gado ou quem quer que seja atravessar a cerca da propriedade dele, passando por cima de qualquer delegado, político, lei ou pacto democrático que seja. Quando Marciano, um proprietário amigo de Sanches, desaparece depois de um conflito com um grupo indígena da região, ele e seu bando entram pelo mato para aplicar o olho por olho dente por dente da vingança.

 

Em diferença a Joaquim Prestes e Belazarte, a “mentalidade psicossocial” de Sanches é simples e assassina, não tem complexidade ambivalente, e acho que a simplicidade do personagem e a brutalidade do conto são um caso extremo e único na literatura de Mário. Talvez por isso o conto tenha sido deslocado para sua Obra Imatura. Mas se colocado na mesma trilha de interpretação na qual estamos, o conto complementa o conjunto exatamente por apresentar o personagem simplório e a violência pura.

 

Já acompanhamos como eram brutais as ideologias brancas em relação aos indígenas durante os primeiros séculos de colonização portuguesa no Brasil, e que os discursos em geral tentam sublimar. Mas os relatos de violência contra indígenas na virada para o século 20 em São Paulo conseguem ser mais violentos do que aqueles: não estão mais no universo da gambiarra jurídica ou da desculpa esfarrapada — estão no da pura violência liberada, pura destruição, sem responsabilização ou consequência. Com a escolha e viabilização da mão-de-obra escravizada africana na economia colonial, a necessidade de escravizar indígenas é simplesmente substituída pela ideia de seu extermínio.

 

De fato, os relatos existentes sobre casos acontecidos na região onde se passa o Caso em que entra bugre no início do século 20 são realmente impressionantes por sua violência extrema (e sua semelhança com o conto de Mário). Então, talvez seja mesmo verdade esse bilete deixado por Mário no Diário Nacional: não é impossível que a “pessoa de respeito” que contou o causo para Mário seja Curt Unkel Nimuendajú, um etnólogo alemão que viveu em São Paulo, e que publicou em 1910 um texto sobre como indígenas do grupo Oti, que habitavam a região onde se passa o conto, haviam sido chacinados por brancos. O fim da tribo Oti foi publicado por Nimuendajú em uma revista alemã, mas ganhou uma versão em português publicada no jornal O Estado de São Paulo em 09/11/1911. Nesse texto, o etnólogo alemão conta como brancos ocuparam a região do médio Paranapanema no final do século 19, batizando o lugar de Campos Novos e construindo casas, roças, capelas, pastos de criação etc. Entretanto, já havia diversos grupos indígenas que habitavam essa região. Entre eles o grupo indígena Oti — que vivia da caça — e que passou a caçar animais do pasto dos brancos, sem compartilhar da noção de que poderiam “pertencer” a alguém. Escreve Nimuendajú: 

  

 

 

Em 1870 trouxera João da Silva, genro de José Theodoro, uma tropa de 80 éguas para criar nos Campos Novos, e pouco tempo depois já os Otis tinham matado e comido a última destas; eles não se incriminam absolutamente por isso, e tanto é assim que continuavam a viver despreocupados e tranquilos na vizinhança dos criadores; o prejudicado, porém, planejou vingança; ajuntou com toda a calma 57 homens com os quais investiu uma das principais aldeias da vizinhança que estava situada no Córrego da Lagoa, pequeno afluente do rio Sapé. (...) foram mortos todos sem exceção de idade ou sexo, até verificaram apenas duas ou três crianças que foram levadas como troféus vivos. Quantos Otis foram assassinados nesta ocasião não se pode assegurar até hoje. José Paiva, um dos que fizeram parte do grupo de assaltantes, disse-me que os mortos estavam em montes sobre o terreno. (...) novos planos de assaltos foram feitos, e finalmente atiravam aos Otis matando-os aonde quer que fossem encontrados, fazendo-se um divertimento em os apanhar com o laço no campo. [Curt Nimuendajú no artigo O fim da tribo Oti]

 

  

Não há nenhuma palavra sobre a completa ausência de punição ou aplicação de alguma lei sobre os assassinatos, mas há menção ao “divertimento em os apanhar com o laço”, o momento perverso. Sobre essa mesma região e sobre os mesmos Oti, Darcy Ribeiro acrescenta: 

 

 

Outras chacinas foram organizadas; por fim os criadores caçavam os Oti com a mesma naturalidade com que estes atacavam seus rebanhos. E foram ficando cada vez mais afeiçoados ao esporte que nenhum mal lhes causava, porque, já então, era sabido que jamais um desses índios havia usado suas armas para defender-se dos sertanejos. [no livro Os Índios e a Civilização

 

 

Quer dizer, nem os Oti atacavam os brancos e nem a lei era aplicada em relação às chacinas. Além dos Oti, viviam nessa mesma região Coroados, Caingangues e Kaioás: encontraremos a mesma brutalidade e violência contra todos esses grupos nos discursos e justificativas de invasão de terras, depois da chegada dos brancos. Por exemplo, a construção de uma estrada de ferro (parte da penetração do sertão e da expansão para o oeste paulista) promoveu um massacre entre os Coroados. Um técnico da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo escrevia o seguinte:

 

 

O caminho do progresso da cultura desta zona está claramente indicado. Os Campos Novos do Paranapanema é sertão mais fácil de povoar que o do Rio Feio e Aguapeí. Cruzado já por uma estrada de rodagem que se acha construída até a Foz do Rio Santo Anastácio e sendo em via de prolongamento uma importante estrada de ferro que penetra na sua parte central, não pode continuar por muito tempo a estagnação de seu povoamento. O inimigo perfidioso, sanguinário e vingatório, o Coroado selvagem, finalmente terá de aceitar a civilização e emigrar ou sucumbir, e o sertão, o admirável sertão abrir-se-há, sem condições, aos inteligentes e valentes pioneiros da cultura e da humanidade. 

 

 

Em pleno século 20, a linguagem era de guerra aos indígenas. Na mesma época e sobre a mesma região, o então diretor do Museu Paulista, Hermann von Ihering, advogava pelo extermínio dos Caingangues, com as seguintes palavras publicadas no jornal O Estado de S. Paulo

 

 

Os atuais índios do Estado de São Paulo não representam um elemento de trabalho e de progresso. Como também nos outros Estados do Brasil, não se pode esperar trabalho sério e continuado dos índios civilizados, e como os Kaingangs selvagens são um empecilho para a colonização das regiões do sertão que habitam, parece que não há outro meio, de que se possa lançar mão, senão o seu extermínio.

 

 

 

São diversos os discursos que, como esses, procuravam justificar a violência pura contra indígenas em favor da “civilização”. Mas nesses casos de Campos Novos não há mais ambivalência, não se usa mais a desculpa esfarrapada de escravizar o indígena para o próprio bem dele: a expansão capitalista é simplesmente barbárie pura, massacre solto. Essas muitas chacinas simplesmente não entravam no “império da lei”, passavam longe da influência dos delegados ou da racionalidade democrática.

 

 Mário de Andrade, um modernista interessado nas culturas indígenas, provavelmente conhecia esses discursos, falados e publicados por gente de carne e osso. Talvez seja mesmo o conjunto desses diversos textos (entre outros) que componha a “pessoa de respeito” que lhe contou a “base de verdade” do conto. Penso que Mário usou esses textos, discursos e notícias como material para desenvolver a literatura de Caso em que entra bugre, inclusive apontando a região onde a moeda do progresso expunha sua outra face de brutalidade completamente irracional.

 

Se não, pelo menos o escritor deve ter lido os livros e relatos de, por exemplo e novamente, aquele Francisco Adolfo de Varnhagen, o sorocabano do século 19 historiador e ideólogo paulista do combate ao indígena. Um dos relatos que Varnhagen publicou em um jornal da época, A picada do mato virgem: fragmento d’uma viagem ao sertão, bem que poderia ter sido narrado por Sanches: 

 

 

Continuando nesse mesmo caminho, que fraldeja o mato virgem ainda que por vezes devassado do gentio, vi sair dele alguma fumaça, e aplicando mais a vista distinguí uma aberta, em lugar onde as árvores haviam sido cortadas a eito, como na Europa se costuma para fazer um aceiro. Supus com razão que não era trabalho de índios bravos, ou bugres (...).

 

(...)

 

Poucos passos dei afoito: os prolongados pios de alguma jacú-tinga, que estava dentro do mato, nessa paragem emaranhado de arundineas taquaras, me fizeram recordar o que antes tinha lido, ou ouvido contar, que os índios bravos assobiam imitando esta ave galinácea tão requestada do caçador, para o atrair e atacá-lo de improviso, disparando um chuveiro de frechas de que irremissivelmente cairá morto! Coitado do incauto e inexperto que acudiu ao reelamo. [O Panorama, Julho de 1841.]

 

  

Quem puder ler esses relatos de Varnhagen, entre outros por aí, vai perceber como várias palavras, ideias e jeitão são parecidos com as do narrador que o Mário criou. A transformação dos dados reais em literatura, inclusive, tem pouca modificação: Campos Novos continua sendo Campos Novos e as adaptações das narrativas de Varnhagen são quase imitações. Tenho pra mim que Varnhagens, Iherings, Unkels e seus textos são a “pessoa de respeito” que contou o caso para Mário — ou melhor, esses textos (entre tantos possíveis) são as fontes que o escritor usou para caracterizar melhor seu personagem: o paulista proprietário que, em pleno século 20, trabalha pelo “progresso” onde ele tem a forma de um extermínio puro e simples de populações indígenas inteiras, que sente prazer nesse extermínio e não sofre nenhum tipo de punição da lei por isso. Gente aberta e orgulhosamente perversa, que se fosse capaz de se analisar, revelaria a própria perversão e o gosto pela morte, nada mais. Abrutalhado, simplório, tosco, violento e chucro, esse tipo existe até hoje em grande quantidade, forma parte da cultura paulista e capitaneia um dos capítulos mais intragáveis da “evolução” do capitalismo nas bordas do sistema.

O conjunto

Se a gente juntar a brutalidade pura e simples dos Bolsonaro, quer dizer, de Sanches na galeria de proprietários paulistas, o conjunto desses contos expõe uma versão da identidade nacional trágica — já que a diversidade dos povos indígenas e da população de origem africana, que teoricamente formaria essa identidade, é sistematicamente combatida, despedaçada, destroçada e deixada à míngua, na capital, no interior e na floresta, pela colaboração velada entre Belazartes, Prestes, e Sanches.

 

A alucinação autoritária e conservadora desses personagens exprime uma costura complexa entre fantasias de merecimento, pretensa civilização superior, cultivo abobalhado de ideias europeias, cultivo da violência perversa e uma inabalável crença na acumulação hereditária de bens. Mário de Andrade descreve e retrata uma elite paulista diversa, que segue cultivando sinapses coloniais, e cujos exemplares até hoje a gente vê por aí: a brega-metida-neo-clássica (Joaquim Prestes), a descomprometida-sapatênis (Belazarte) e a bolsonarista (Sanches), que de diferentes modos se sente superior a toda a multiplicidade de povos que se trombou por aqui.

 

São figuras que detêm um certo poder, bastante relativo, na velha expansão da economia capitalista mundial — que, já sabemos, não vai se importar de levar o mundo inteiro ao colapso. Só que, no caso paulista, são a parte colateral, neocolonial, liberal-escravocrata, caipira-descolada-do-brejo. São produto da mesma bad-trip capitalista, só que compõem sua face jeca-fundamentalista. E a identidade nacional, vista por esse conjunto de contos, é uma estranha construção na qual, no espaço de um instante ou de uma caneta que cai, o respeito, a convivência ou a admiração com o diferente pode virar em ódio, medo, desprezo, força bruta e, principalmente, impulso de participar das alegres pabulagens do grupo rico-brega-ostentatório que sabe pegar na xicra. Uma das duras lições da organização lado a lado desses contos — sua dimensão sombria — é a de que nossa famigerada identidade nacional pode incluir a supressão violenta de si mesma.

O quarto personagem: Mário de Andrade

Não deixa de ser impressionante o modo como o próprio Mário de Andrade se propõe a projetar e incorporar algo dessa dimensão sombria, identificando e objetivando traços de si mesmo e de seu círculo de convivência em seus personagens. O escritor é generoso ao oferecer sua própria ambivalência em análise, a fim de conhecê-la melhor e dar a ela uma forma literária, compartilhada — ou seja, passível de ser analisada por todos nós. Ao identificar, reconhecer e objetivar traços de si mesmo e de seu círculo em seus personagens, Mário é sempre um pouco alter ego deles (mais óbvio no caso de Belazarte ou da “visita”, mais difuso no caso de Joaquim Prestes ou Macunaíma). Assumindo sua participação no vale das ambivalências brasileiras, o escritor a complexifica e perspectiva ao reconhecer sua 

 

 

pré-noção invencível, mas invencível de que o Brasil, em vez de se utilizar da África e da Índia que teve em si, desperdiçou-as (...) E deixou-se ficar, por dentro, justamente naquilo que, pelo clima, pela raça, alimentação, tudo, não poderá nunca ser, mas apenas macaquear, a Europa. (...) Devíamos pensar, sentir como indianos, chins, gente de Benin, de Java... Talvez então pudéssemos criar cultura e civilização próprias. Pelo menos seríamos mais nós, tenho certeza” [no livro O Turista Aprendiz]. 

 

 

A impressão de insuficiência do “nós” traz para a reflexão e para a criação artística o componente trágico da identidade nacional — a ausência gerada pelo desperdício, ou pela supressão. Mas como participante na galeria dos ambíguos, há também momentos dos livros de Mário nos quais os ecos daquela primeira mítica (de um rio branco caudaloso que absorveria os rios negro e vermelho) aparecem de modo, digamos, menos crítico. Por exemplo, quando escreve, em um estudo publicado em 1928, que a música brasileira teria diferentes fontes: “a ameríndia em porcentagem pequena; a africana em porcentagem bem maior; a portuguesa em porcentagem vasta”. Aí, Mário está ecoando as “medidas” do velho discurso de Von Martius. Ou ainda, talvez o caso mais ambivalente e sem dúvidas o principal, no Macunaíma, também de 1928, onde o escritor adapta diversas variações populares da mítica, por exemplo: 

 

 

Uma feita a Sol cobrira os três manos duma escaminha de suor e Macunaíma se lembrou de tomar banho. Porém no rio era impossível por causa das piranhas tão vorazes que de quando em quando, na luta pra pegar um naco de irmã espedaçada, pulavam aos cachos pra fora d’água metro e mais. Então Macunaíma enxergou numa lapa bem no meio do rio uma cova cheia d’água. E a cova era que nem a marca dum pé gigante. Abicaram. O herói depois de muitos gritos por causa do frio da água entrou na cova e se lavou inteirinho. Mas a água era encantada porque aquele buraco na lapa era marca do pezão do Sumé, do tempo em que andava pregando o evangelho de Jesus pra indiada brasileira. Quando o herói saiu do banho estava branco loiro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E ninguém não seria capaz mais de indicar nele um filho da tribo retinta dos tapanhumas.

 

Nem bem Jiguê percebeu o milagre, se atirou na marca do pezão do Sumé. Porém a água já estava muito suja da negrura do herói e por mais que Jiguê esfregasse feito maluco atirando água pra todos os lados só conseguiu ficar da cor do bronze novo. Macunaíma teve dó e consolou:

 

– Olhe, mano Jiguê, branco você ficou não, porém pretume foi-se e antes fanhoso que sem nariz.

 

Maanape então é que foi se lavar, mas Jiguê esborrifara toda a água encantada pra fora da cova. Tinha só um bocado lá no fundo e Maanape conseguiu molhar só a palma dos pés e das mãos. Por isso ficou negro bem filho da tribo dos tapanhumas. Só que as palmas das mãos e dos pés dele são vermelhas por terem se limpado na água santa. Macunaíma teve dó e consolou:

 

– Não se avexe, mano Maanape, não se avexe não, mais sofreu nosso tio Judas!

 

E estava lindíssimo na Sol da lapa os três manos um loiro um vermelho outro negro, de pé bem erguidos e nus.

 

  

Ainda que de modo irônico e jocoso, a carga preconceituosa do racismo colonial e da mítica das três raças está atualizada e reeditada em Macunaíma. Talvez Mário argumentasse não ser exatamente o autor do texto, mas ter optado por reformular histórias e lendas tradicionais brasileiras na forma de uma “rapsódia”. Afinal, já o Padre Antonio Vieira, lá no século 17, dizia em seu sermão que “um negro, se se lava nas águas do Zaire, fica limpo, mas não fica branco; porém na água do Batismo sim”. Além disso, temos que lembrar que toda essa construção — incorporada no herói da nossa gente — vai se despedaçar no fim, expondo sua fragilidade e inconsequência. A complexidade, a ambivalência e a ambiguidade formuladas em Macunaíma vão aos céus, e o próprio Mário escreve para um amigo como esse mix (gestado no caldeirão de sua enorme pesquisa) ganha corpo: “o que posso lhe jurar é que Macunaíma foi detestavelmente doloroso para mim”.

 

Em caminho diferente, nos contos reunidos aqui não há “rapsódia” ou adaptação de lendas tradicionais, mas objetificação em estrutura literária de realidades vividas, inclusive íntimas. Com a escolha desses contos, então, procuramos reorganizar a criação de Mário de modo a expor atritos menos evidentes em sua obra e em sua pesquisa sobre a cultura brasileira. Talvez esse seja o momento de lembrar um exemplo orientador para o “método” desse audiolivro: o impacto do depoimento da professora Diva Guimarães na Flip de 2017, quando essa senhora, neta de escravizados e então com 75 anos, narrou aquela mesma história adaptada por Mário de Andrade em Macunaíma, só que do ponto de vista de uma criança negra de seis anos em um colégio interno do Sul do Paraná:

  

 

Eu vim do interior do Paraná, lá do mato, estudar em Curitiba (...) as freiras contavam a seguinte história: que Jesus — Deus — criou um lago, um rio, e mandou todos tomar banho. Assim, e se banhar na água abençoada daquele maldito rio, tá? Aí, as pessoas que são brancas, é porque eram pessoas que eram trabalhadoras, inteligentes, e chegaram nesse rio, tomaram banho, ficaram brancos. Nós, como negros, somos preguiçosos — e não é verdade, porque esse país vive hoje porque meus antepassados deram condição pra todos — então nós, como negros, preguiçosos, chegamos no final, quando todos tinham tomado banho, o rio tinha… só tinha lama. Então, como a gente era preguiçoso, então nós temos a palma da mão clara e a sola dos pés, porque nós só conseguimos tocar as mãos e os pés. Aí você saiu, por isso que a gente tem as palmas das mãos e dos pés claros. Isso ela explicava, ela contava a história, pra contar pros brancos como a gente era preguiçoso, e não era verdade. Isso não é verdade. [Flip 2017 - Território Flip/Flipinha: Diva Guimarães. YouTube, 28/07/2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Z5aS8bukb2o. Acesso em: 17/08/2023

 

 

Se as variações da mítica das três raças forem pensadas no conjunto dos diversos pontos de vista, o pathos se altera, expondo a intenção política da narrativa. Também por isso procuramos realçar o caráter oral e musical da prosa de Mário de Andrade (é ele mesmo quem diz para Manuel Bandeira, em carta, que os contos tinham “estilo falado, e não escrito”), construindo versões sonoras com a participação de vozes brancas, negras e indígenas de São Paulo: Zé Luiz Mazziotti, Max B.O., Rossandra Cabreira e Maria Fernanda Carmo. Isso não para preservar certos “lugares de fala” ou para perpetuar histórias de preconceito, mas para tentar realçar momentos da criação de Mário nos quais o racismo é deficitário: ao atingir negros e indígenas pela violência direta, e ao atingir a sociedade brasileira em geral, por levar todos a uma subjetivação porcaria. E a subjetivação ruim faz com que as pessoas mantenham práticas de racismo e violência, desde suas posições. Então, ficaríamos felizes se, com esse audiolivro, conseguíssemos contribuir, um pouco que seja, para a desmontagem da subjetividade toda problemática dos filhos das “famílias de quatrocentos anos”, que há séculos vacilam entre lidar de fato com a humanidade daquele que tem cor de pele diferente da sua ou transformá-lo em inimigo, dependente, estorvo, ladrão ou “meu criado”. 

 

 

Bom, chega. Muito obrigado por chegar até aqui, e até o próximo audiolivro da Rádio a Granel.

bottom of page