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Caso em que entra bugre

Conto:

00:00 / 30:12

Autor:

Mário de Andrade

1929

Ano:

Narração:

Maria Fernanda Carmo e Rossandra Cabreira

Rossandra Cabreira e família (vozes)

Músicos:

Ricardo Zohyo (contrabaixo)

Enrique Menezes (flautas e viola caipira)

Daniel Grajew (piano)

Diogo Maia (clarinete e clarone)

João Gabriel Fideles (bateria e percussão)

Na trilha sonora:

Arami xe jeroky (tradicional da etnia Guarani)

Tapuias (Ricardo Zohyo)

Toada de Agradecer (Daniel Grajew sobre fonograma do Arquivo Histórico da Discoteca Oneyda Alvarenga)

Sonorização:

Rádio a Granel

Edição:

Rádio a Granel

Mixagem:

Enrique Menezes e Gustavo Vale 

Gustavo Vale

Masterização:

Caso em que entra bugre

Mario de Andrade

Desta vez vamos entrar no mato-virgem. Engraçado… si a gente fosse especificar um pouco mais o desenvolvimento social do interior paulista, podíamos reconhecer a existência duma fase digna de ser apelidada “civilização de delegado”. Houve um momento em nossa vida, em que uma espécie de criação de vergonha nos elementos de carreira, fez com que os delegados decidissem acabar com os caudilhismos locais. Pelo menos na manifestação escravocrata, dona de vida e de morte que esse caudilhismo tinha. Si a infâmia pouco ou nada mudou e tende mesmo, agora, a se intensificar como revide às Oposições aparecendo, pelo menos os senhores de escravos mudaram de nome, ficaram se chamando “chefes políticos”. E essa mudança de nome parece que satisfez inteiramente o nosso povo frouxo…

 

Pois foi nos princípios dessa “civilização de delegado” que o imperialismo do Sanches crepitava lá no sertão, lados de Campos Novos. Ele bem que tinha mandado falar pro Marciano que cerca é cerca, e não deixasse mais gado passar de campo. Marciano era outro abonado do bairro e também gozava sua fama. O fato é que afrouxou. Um belo dia os bois-de-carro dele, cinco juntas barrosas, foram dar no jaraguá do Sanches. O malvado soube e não perdeu tiro: dez furinhos na testa da boizada.

 

O delegado esperou queixa e, como esta não viesse, mandou chamar Marciano.

 

— Seu Marciano, eu estou aqui pra cumprir a justiça e acabar com os abusos dos caudilhos!

 

— Sim senhor, seu delegado.

 

— Então, seu Marciano, o senhor perdeu todos os bois-de-carro?

 

— Perdi sim, seu delegado.

 

— O senhor sabe muito bem do que morreram os bois!

 

— Sim senhor.

 

— E não quer dar queixa!

 

— Queixa do quê?

 

— Mas… do que sucedeu!

 

— Foi de erva, seu delegado.

 

— Ora, seu Marciano, toda gente viu os furos!

 

— Furo eles tinham sim, mas foi de erva.

 

O diálogo se espalhou fácil e Sanches soube. Não sei si gozou. Sorrir, não podia sorrir porque tinha boca de escultura, feita séria pra todo o sempre, mas quando foi ali pela noitinha apareceu na casa de Marciano. Ficaram no galpão até de noite, conversa vai, conversa vem, frases soltas porque eram homens de pouca fala. Afinal Sanches ofereceu pra racharem o prejuízo. Marciano respondeu que o que passou passou. Ũa amizade antiga nasceu entre os dois. Sempre arredios ambos, agora, quando sinão quando um surgia na casa do outro, café, e fumo pra que mais fumo falando casado no ar o que os dois homens sentiam sem dizer.

 

Uma feita Marciano foi buscar uma ponta de gado longe e o grupo dele topou com os bugres. Escaparam só dois pra vir contar o caso, como se diz. Sanches chamou os tais e fez um interrogatório mesmo de meticuloso. Ficou parafusando, de olho caído. Depois, parece que os olhos dele riram, quando acendeu cigarro pra falar com segurança:

 

— Marciano não morreu.

 

— Qual! seu Sanches… a estas horas já está voando em tripa de urubu!

 

— Si escapou no encontro, depois não morria mais. Marciano sabe mato.

 

Entrou em casa.

 

— Felizmente que era solteiro, consolou a mulher.

 

Porém tanto cigarrão um depois do outro, inquietavam a dona. Sanches estava olhando muito fixo e Dasdores conhecia o marido. Afinal ele se ergueu. Pigarreou e, não era pra dar satisfação não, era de-certo pra firmar bem a vontade:

 

— Vou buscar Marciano.

 

Dasdores tomou com um baque fundo no sentimento, baque afinal esperado… Continuou no serviço. E os dias em que ela ia se emparedar na inquietação, tinha de ser!…

 

Foi uma bandeira em regra, equipamento completo e dezoito companheiros decididos. Dasdores arranjou tudo, trabalhou feito burro esses dias pra no fim só ganhar aquele abracinho meio de banda na partida. Também a idade e a filharada não davam pra mais!

 

Depois: o emparedamento na inquietação datava nela do instante em que o Sanches resolvera partir. Mulher do Brasil antigo era assim mesmo: branco ou preto. Donas rijas de não se ser mais, a sutileza sempre andou de pique com elas. Não sabiam os aumentos da saudade nem a diminuição dos gostos. Ou bem era saudade ou bem gosto. Feito aqueles órgãos medievais que não tinham meios pra registrar nem crescendos nem diminuindos, as donas do Brasil antigo conheciam só o forte e o piano. E os homens paulistas que tocaram nesses órgãos, chê! não sabiam fazer ralentando não. Si a música se acabava, se acabava duma vez. Quando Dasdores entendeu que o homem dela partia, ele partiu. Estava ali, que nada! Estava mas já partido, correndo o mistério do mato. E a pobre se emparedara na inquietação. Nem bem inquietação! Era viuvez e luto eterno pelo defunto marido. Por isso pra Dasdores não foi mais que um bater de quatro horas, quando a bandeira partiu rumo do poente.

 

Nem bem fez semana daquela viagem penosa, campeando por todo lado, quem sabe si não estará ferido no rancho de tropa de Santa Cruz? batiam pra Santa Cruz e nada, quando fez semana assim, chegaram no lugar da briga. Sanches parou muito, examinando tudo. Ossos espalhados, com fiapos de carne ressequida. Na sapopemba duma árvore muitos ossinhos lascados.

 

— Isso é de pé, Sanches falou.

 

— Como que mecê sabe? perguntou o companheiro mais de confiança.

 

— Bugre mata pra roubar. Porém não aprendeu a tirar bota de pé. Corta a perna junto do cano e depois vai cavocando a carne.

 

— Nossa Senhora!

 

— Depois a bota serve de chapéu nas danças, ou pra enfeite de cintura.

 

— Por que não calçam!

 

— Não vê que índio deixa de tocar pé no chão. Só o pé já conta muita coisa pra ele.

 

Seguiram assuntando na serrapilheira algum traço de bugre. Sanches dirigia seguro a caminhada. Uma ocasião, era num cerrado ruim de atravessar, um do grupo exclamou:

 

— Uma botina!

 

E Sanches:

 

— Não falei? Marciano está vivo. Si é botina, é dele que não gosta de bota.

 

— Pode ser de Marciano porém só botina, fala mais é que ele está morto, pai.

 

— Fala que está vivo, Galdino.

 

Foram andando. Então Sanches ensinou:

 

— Botina caiu por debaixo da urtiga, bugre não viu. Marciano sabe que bugre mata só pra tirar roupa. Foi fugindo, foi tirando a roupa e deixando no caminho pra eles pegarem. Gente nu, bugre escraviza só, não mata.

 

E parou, fatigado de falar tanto duma vez.

 

A capoeira descambava pra um banhado tijuquento que careceu beirar. Sanches continuava no sherloquismo sertanejo, reparando em tudo. Toparam com uns rastos de gente de pé-no-chão, eram os índios. De repente Sanches agachou mostrando um rasto só.

 

— Pé de Marciano.

 

— Vassuncê até parece feiticeiro, credo! Como que sabe que é pé de Marciano!

 

— Gente que anda de pé-no-chão não firma assim no calcanhar, firma na frente. Veja esse outro como está fundo nos dedos.

 

— Ara, ara…

 

— E veja os dedos, João. Dedo junto assim, só de quem anda calçado.

 

De indício em indício, penaram mais três dias na mesma. Perderam rasto de Marciano, porém sempre, de longe em longe, algum sinal de bugre aparecia; e um gosto silencioso de caçada desumanizara por completo a procura. Afinal uma tarde a voz de Sanches se afobou um bocadinho:

 

— Passaram aqui a noite.

 

Já então os companheiros estavam acostumados a esperar pela prova da afirmativa, sem perguntar nada. Sanches pegou numa ponta de cigarro francamente nova ainda.

 

— É mesmo, sussurrou Galdino como temendo que os bugres escutassem, porém como vassuncê sabe que era de-noite, pai?

 

— O cigarro foi feito de-noite, a palha está no avesso, veja.

 

Foi então que uma seta desajeitada, de quem atira escondido, veio fraca bater na cinta de Galdino. Sanches pulou de banda puxando o filho, e caiu agachado por detrás duma árvore. Um assobio duro furou a tarde, e logo uma zoada medonha duns vinte bugres gritando, pulando pra amedrontar. E a chuvada de flechas no pessoal. Nem sei como não fugiram. Mas logo um tiro do Sanches visitou o órgão da vista dum marmanjo quarentão, nu todinho. Foi um esparramo na bugrada. E se não fosse a energia do Sanches gritando pelo pessoal, creio que o estratagema dos bugres dava certo, os campeiros se apartavam uns dos outros, se perdiam, e daí era só dar cabo dum por um, porque isso de matar à traição pra bugre é jogar castanha.

 

Quando o sossego entrou de novo em vida, os dezoito ali, só dois mesmo estavam bem feridos, um na perna, outro no braço. Carecia ver mas era si as flechas não estavam ervadas. Quanto aos bugres, muito balázio isso haviam de ter carregado, além dos dois ficados já no outro mundo, e mais ainda aquele rapazinho morremorrendo com o tiro na barriga. Deram cabo dele a pontapés.

 

Mas o posto já estava muito sabido pra ficarem mesmo ali. Curaram malemal as feridas e, carregando o capenga, foram amoitar a um quilômetro, num lugar onde o mato era que nem nó-cego, de tanto cipó. Ficaram lá pra ver o que sucedia com os feridos. Era de esperar que nada, por causa das simpatias e contravenenos. E de fato; só o capenga tomou com uma febrinha sem tremor quando a lua entrou.

 

A noite, passaram se revezando na espreita. Não veio nada. Só o quiriri negro da mata. O vento murmuriava lá em cima do arvoredo numa varredura cheirando pó. O mato estalava de seco resvalando na asa dos morcegos. Berros… Os berros mesmo do sertão que eles sabiam decor. Tudo parecendo perto e tudo enorme.

 

Quando se soube da manhã, toda a gente levantou. De-certo era por ali mesmo o mocambo, porque tinham enxergado muito bem mulheres na indiada. E afinal, a razão conhecida era que tinham vindo em busca de Marciano, mas si aquela gente fosse capaz de se analisar, a verdade é que tinham vindo matar bugre, nada mais. Estavam ferozes e completamente caçadores.

 

Sanches com Galdino comiam, mais apartados, um pouco de paçoca e ouviram de repente um pio de inambu. Sanches quasi bateu no filho pra este não falar. O silêncio durou de-certo uns cinco minutos, e o pio varou de novo o espaço, com mais coragem. Sanches colou quasi a cabelaça amarelenta do bigode na orelha do filho:

 

— Nambu não pia em abril, vamos ver.

 

Deram aviso pros homens, e se dirigiram pros lados do pio. Iam de mansinho. Pela terceira vez o inambu piou, mais forte agora, como um chamado inquieto. Estavam numa vertente doce do espigão. Da vertente fronteira, bem mais longe, outro inambu secundou ao chamado do companheiro. Os dois homens iam descendo com muito cuidado pra não fazer bulha. Era quasi impossível isso, por causa da serrapilheira estar seca, porém Sanches, em vez de endireitar pro pio, descia procurando o fundo da vertente. Queria pegar o terreno úmido embaixo, quem sabe si algum corgo? pra andar com menos bulha no podrume das folhas ou n’água. Dito e feito: resvalaram entre as árvores, e lá em baixo vertia uma aguinha que era um fio apenas. Então quebraram pra esquerda, se dirigindo pro pio. Chegaram num lugar onde o terreno caía brusco, fazendo de-certo uma cascatinha em tempo de mais água que naquele ano de seca. O pio respondedor, na outra vertente, nasceu cem passos talvez dali. Se agacharam, e foram de rastro, avançando com lentidão. De repente Sanches parou. Galdino se arrastou pra junto dele, maltratado pelos gestos de cuidado que o pai fazia. Estavam no alto da depressão, em pleno leito do corgo, entre avencas. Nas margens o terreno despencava jeitoso, numa descida rápida cheia de arbustos.

 

Então, olhando pra onde o pai mandava, embaixo, a uns cinco metros só, Galdino enxergou um bugre. Com o tombo da cascatinha, a água fizera lá um pouco de leito, e agora o fio dela corria no fundo dum barranco. Caído no alto do barranco, o bugre não mexia. Estava ardendo de sede, com os olhos lambendo a aguinha inatingível. Nisto fez um jeito de atenção, assuntando a outra margem. Os brancos olharam também. Surgiu de arrasto, entre as canaranas, uma bugra nova, de-certo a que secundava aos pios do outro. O companheiro olhou salvo pra ela. Se arrastando sempre, a índia afinal chegou na beira do barranco. Fez força, deixou-se cair com uma bulha de água espirrada no leito do corgo. Deu um gemido insuportável, e a careta que esboçou foi medonha de dor. O corpo, os braços movia bem. Tinha tomado com uma bala na perna ou no pé direito, não podia andar. Foi se erguendo, agarrada nas canaranas, esfregando o corpo no barranco e pôde chegar com a cara na cara do homem. Um gesto, não sei si de carinho, si fadiga, ela fez; encostou a cara na cara do companheiro. O bugre é que não quis saber! Falando com raiva, tirou a cara de encostar na da índia e deu um bruto munhecaço na cabeça dela. A pobre caiu de novo com o empurrão, enquanto o macho silvava um ronco de dor, e abria uns olhões quasi tamanhos como os das nossas moças. Parecia ferido na espinha, nem sei!

 

Principiou uma cena desgraçada. A bugra estava fatigadíssima, não podia se erguer sem se ajudar com as mãos. Se suspendia um bocado com a direita só, trazendo na concha da esquerda água pro companheiro. Mas caía. Quando não caía, no meio do erguimento já não tinha mais água na mão. Uma vez até andou dando viravoltas suspensa nas canaranas e afinal tombou com um pedaço grande de barranco a mais. Assim não ia mesmo. Andou olhando em volta, desesperada pela raiva do bugre. De-certo procurava alguma folha larga, não havia, só avencas. A índia se ergueu de novo no barranco. Segurou forte na canarana com a mão esquerda e se abaixando, tentou guardar água na concha da direita, porém corpo não dava assim, e quando ela quis mudar a mão esquerda pras canaranas bem da borda, o barranco esboroou, e ela estendeu de novo, com dores tão temíveis que o gemido subiu vivo até os brancos. O bugre então falou quasi alto, de tanta impaciência. Estava morrendo. E batia com a cabeça dum lado pra outro, pavoroso de sofrimento. A índia não sabia o que fazer, ficou feito zonza, apertava a perna ferida bem no joelho, oscilava com o corpo a perplexidade que tinha no espírito. Teve de supetão este gesto: botou a boca no chão, encheu as bochechas de água, e se erguendo depressa com mãos e perna e corpo, juntou boca com boca, deu de beber pro bugre. Tornou a fazer o mesmo, e fez assim três vezes. Quarta não pôde fazer mais, de bala do Sanches dizem que ninguém escapou até agora. Até contaram que foi uma bala só pros dois, não creio…

 

Isso foi só pano-de-amostra de ũa matança em regra que somou duas dúzias de bugres, contando os curumins, e não contando o que apareceu pela metade e temporão no ventre da mãe morrendo. Dias depois deram com o mocambo, que era numa aberta artificial do mato. Cerco bem feito e tiro em pleno sol das 14 horas.

 

Então a bandeira voltou pra Campos Novos. Inútil perguntar por Marciano, jamais ninguém saíra em busca de Marciano, um defunto. Voltavam felizes com bem rapidez, e muita coisa pra satisfazer por dentro. E por fora também, com as pabulagens!… E o mato virgem que em toda a parte do mundo sempre guarda numerosíssimos indícios de civilização pros olhos misteriosos dos exploradores, não dava mais pro grupo as marcas vivas de Marciano, com que na ida eles alimentavam a felicidade de matar.

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